Valor econômico, v. 18, n. 4459, 10/03/2018. Política, p. A6

 

Delfim diz que formação de consórcio garantiu a disputa por Belo Monte

Claudia Safatle 

10/03/2018

 

 

O ex-ministro Delfim Netto ajudou a formar o segundo consórcio que disputou com a Andrade Gutierrez o leilão para a construção da usina de Belo Monte. Sem um outro grupo para competir, disse Delfim na sexta-feira ao Valor PRO, serviço de informação em tempo real do Valor, não haveria concorrência no leilão. O consórcio ganhou a disputa, mas, pouco depois, o governo reuniu os ganhadores e perdedores no consórcio construtor, que tocou a obra.

"Não recebi propina. Não sou funcionário público. Recebi honorários por serviços prestados", assegurou o ex-ministro. "E não foram R$ 15 milhões. O que recebi foi menos e está declarado no Imposto de Renda. Eu já estou arrependido de não ter recebido R$ 15 milhões."

O ex-ministro foi alvo, na manhã de sexta-feira, da 49ª fase da Operação Lava-Jato, quando investigadores da Polícia Federal foram em endereços de empresas e imóveis de sua propriedade com mandados de busca e apreensão. Levaram alguns telefones celulares.

Em entrevista em Curitiba, na manhã de sexta-feira, o delegado Maurício Moscardi Grillo disse que, em troca do resultado do leilão, Delfim teria recebido 10% de "propina" dirigida ao PT e ao MDB. Um pagamento se caracteriza como propina, porém, quando é feito para um funcionário público em troca de vantagens indevidas e não entre entes privados. A suspeita é a de que tenha havido fraude na licitação de Belo Monte, pelo fato de Delfim ter ajudado o governo a formar um segundo consórcio.

A menos que haja outros fatos, a mera formação de um outro grupo de empresas para disputar um leilão não configura fraude. Ao contrário, essa é uma forma de se estabelecer a competição e já foi usada no Brasil em outras ocasiões, como na privatização da Vale, em 1997, e da Telebras, em 1998. Em um dos leilões da Telebras, o BNDES atuou para criar um segundo consórcio que disputaria a Telemar, conforme veio a público após a divulgação de gravações que mostraram que o assunto foi discutido entre diretores do BNDES e integrantes do governo.

Outra suspeita é a de que o ex-ministro tenha recebido uma determinada quantia em mãos das empreiteiras, retirado sua parte e distribuído o restante para os dois partidos, o PT e o MDB. Isso, segundo ele, não aconteceu. "Vou me defender", disse Delfim, que completa 90 anos no dia 1º de maio.

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Conflito e entendimento na origem da investigação

César Felício

Daniel Rittner 

10/03/2018

 

 

Para se entender o suposto envolvimento do ex-ministro Antonio Delfim Netto na investigação sobre o empreendimento em Belo Monte, é preciso relembrar o modo com que a ex-presidente Dilma Rousseff se relacionava com o setor privado. Também é necessário levar em conta o entendimento que os investigadores e o juiz da 13ª Vara Federal Sergio Moro possuem sobre o que é uma atividade de consultoria.

Só assim é possível entender as conclusões da 49ª fase da Operação Lava-Jato, que se baseou em delações premiadas dos executivos Otávio Marques de Azevedo e Flávio Barra, da Andrade Gutierrez, Henrique Valladares, Antônio Carlos Daiha Blando e Augusto Roque Dias Fernandes, da Odebrecht, Luiz Carlos Martins, da Camargo Corrêa e dos empresários Emílio e Marcelo Odebrecht. Depoimentos de José Carlos Bumlai e do próprio Delfim Netto foram considerados e houve a análise de documentos contábeis dos envolvidos de 2012 a 2015.

Dilma tinha uma relação conflitiva com o setor privado e estabeleceu que a licitação para a Usina de Belo Monte tinha que ter a participação relevante de empresas estatais. Queria ainda arbitrar condições duras para as empreiteiras, com um preço por megawatt/hora considerado pouco atrativo.

Em março de 2010, diálogos ácidos entre os donos da Odebrecht e o então ministro das Minas e Energia, Márcio Zimmerman, e Erenice Guerra, que substituiria Dilma na pasta da Casa Civil no início de abril, desestimularam a empreiteira baiana e a Camargo Correa de participar do consórcio investidor.

Às vésperas do leilão, em abril daquele ano, havia apenas um consórcio inscrito para disputar o certame, formado pela Andrade Gutierrez, a única empreiteira grande a aceitar as condições fixadas pelo governo, e as estatais Furnas e Eletrosul. Havia grande temor, no Palácio do Planalto, de fracasso da licitação. Era um risco que não se podia correr. O país estava crescendo a um ritmo de 7% ao ano. Acrescentar megawatts no parque gerador era crucial para não jogar o Brasil no escuro dali a alguns anos. Um vexame no leilão, além de despertar incertezas para a economia, teria um preço político alto.

Segundo os delatores, por meio de Valter Cardeal, então diretor da Eletrobras, o governo soube da intenção do consórcio de propor o valor máximo, de R$ 82,90 por megawatt/hora. No dia do certame, perplexos, os integrantes do consórcio, que se esperava que fosse o único, constataram que havia um outro grupo, formado às pressas, liderado pela Chesf, com 49,98%, com o resto dividido por Queiroz Galvão, Gaia (do grupo Bertin), Joel Malucelli, Cetenco, Galvão Engenharia, Mendes Junior, Serveng e Contem Engenharia. Todas empreiteiras médias ou sem experiência relevante no setor. Mas o preço era 6% menor (R$ 77,97 o MWh) e ele foi o vencedor.

Estava aplicada a lição nas empreiteiras rebeldes, na visão de Henrique Valadares, um dos delatores da Odebrecht. A irritação de Dilma com essa empresa era especial, por entender que a Odebrecht não havia se conformado com a derrota na disputa pela megausina de Jirau, no rio Madeira (RO).

Mas o governo logo percebeu que as empresas vencedoras não tinham expertise suficiente para tocar as obras. Foi aí que se encontrou uma solução salomônica: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez passaram a compor o consórcio construtor, subcontratado para as obras civis pelos vencedores, com apoio do BNDES. Sem o risco de lidar com licenças ambientais, questões indígenas, reassentamentos, defasagem tributária e outros problemas. Era o melhor dos mundos para as empreiteiras.

Para ficarem com aquele contrato e com a promessa de poderem celebrar aditivos (mudanças no contrato ao longo de sua execução), as empresas tiveram que aceitar o pagamento de propina de 1% do valor da obra, metade para o PT e metade para o PMDB. Um ano depois, o então ministro da Casa Civil Antonio Palocci, teria comunicado a Otávio Marques de Azevedo, então presidente da Andrade Gutierrez, que teria que ser separado da propina, de R$ 150 milhões, o valor de consultoria devido a Delfim Netto pelo consórcio devedor, isto é, o consórcio que derrotou as grandes empreiteiras, um arranjo que, em tese, não as favoreceu.

Delfim tinha canal desobstruído com Dilma, Erenice e o mercado. Ele teria que receber R$ 15 milhões pela consultoria. O que foi pago em contas bancárias pelas empresas envolvidas no período investigado foi R$ 4,4 milhões. O ex-ministro nunca negou que tenha ajudado a estruturar o consórcio investidor, mas é intrigante que, segundo delatores, tenha sido remunerado pelos integrantes do consórcio construtor. Os delatores garantem que os contratos assinados com as empresas do ex-ministro são de fachada. Moro em seu despacho deu crédito a essa versão porque considera que as empresas de Delfim faturaram demais sem ter estrutura para isso, isto é, sem ter funcionários.

"A LS Consultoria Empresarial e a Aspen Assessoria e Planejamento Econômico receberam valores milionários de empresas comprovadamente envolvidas em esquemas criminosos, sem possuir estrutura", escreveu Moro. O magistrado considera consultoria um serviço tangível, prestado por equipes de funcionários. Em se tratando de consultoria econômica, é uma métrica controversa e caberá a Delfim, como investigado, comprovar a licitude de suas atividades.

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Para advogados, há riscos reais de ex-ministro tornar-se réu

André Guilherme Vieira 

10/03/2018

 

 

Três advogados criminais ouvidos pelo Valor avaliam a situação do economista Antonio Delfim Netto na Lava-Jato como "delicada" em razão do recebimento de valores em espécie e pelos contratos a título de consultoria firmados com empresas do consórcio Norte Energia, construtor da hidrelétrica de Belo Monte (PA). Os criminalistas foram ouvidos reservadamente.

A avaliação é que o ex-ministro da Fazenda durante os governos Costa e Silva e Médici e do Planejamento na gestão de João Figueiredo, conselheiro presidencial durante os anos Lula e do atual governo Michel Temer, corre riscos reais de se tornar réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na Lava-Jato.

Segundo delatores da Odebrecht, Delfim recebeu R$ 240 mil em espécie a título de consultoria, que foram entregues em seu escritório, em São Paulo, por seu sobrinho Luiz Appolonio Neto - também investigado.

Ouvido duas vezes em depoimento à Polícia Federal (PF), Delfim negou irregularidades mas não soube explicar, na avaliação dos investigadores, a origem dos recursos, nem foi capaz de atrela-los a serviços por consultoria supostamente prestados.

A hipótese investigativa é que, se foi destinatário de propinas desviadas dos contratos - acordadas por ele com Antonio Palocci e as empreiteiras que formaram o consórcio (Camargo, Odebrecht, Andrade e J. Mallucelli) - Delfim incorreu, em tese, em ilícito de corrupção passiva.