Título: ONU critica ONU
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Fonte: Correio Braziliense, 04/08/2012, Mundo, p. 18

Considerada "o maior desafio já enfrentado pelas Nações Unidas", de acordo com o secretário-geral, Ban Ki-moon, a questão síria foi novamente foco de debates na Assembleia Geral da ONU, que anunciou, ontem, uma nova resolução contra a guerra civil no país. Motivados pela renúncia do enviado especial para a Síria, Kofi Annan, e frente à brutal escalada de violência, 133 países votaram a favor de um texto que critica o "fracasso do Conselho de Segurança de alcançar medidas" para obrigar o regime sírio a aplicar as resoluções da ONU e defende a aplicação do plano de paz de seis pontos. Doze nações se opuseram à medida e 33 se abstiveram. Os membros da Assembleia Geral também condenaram o uso de armas pesadas pelas autoridades sírias — incluindo o bombardeio indiscriminado de tanques e helicópteros — e pediram ao regime de Bashar Al-Assad que se abstenha de utilizar agentes químicos.

Para especialistas, em uma guerra que já contabiliza 22.901 mortos em 17 meses de confrontos — 4.339 deles apenas em julho (o mês mais violento desde o início do levante) —, a resolução não deve trazer mudança, uma vez que tece apenas críticas, sem fazer imposições reais. Em Hama, as notícias de um novo massacre praticado por forças do governo aqueceram os ânimos dos que criticam a inação da comunidade internacional.

"Nada vai mudar, se depender da ONU ou da comunidade internacional. Nós, sírios, não esperamos nem nos apoiamos em qualquer ajuda de fora. Não tivemos auxílio em 17 meses, fizemos toda a luta sozinhos. E vamos vencer Al-Assad dessa forma", opinou, em entrevista ao Correio, o porta-voz da Agência de Notícias de Hama, Samer Al-Husain, 28 anos. Ele confirmou ter havido um massacre na cidade onde vive, anteontem. De acordo com Al-Husain, forças do governo atacaram o bairro de Al-Arbaeen. "Não temos detalhes, mas muitos morreram, mais de 50", disse. Agências internacionais relataram 62 mortos — 21 eram membros de três famílias. "As vítimas incluem crianças menores de 10 anos e mulheres", disse um integrante da comissão oposicionista local ao jornal israelense Haaretz.

Na capital Damasco, um bombardeio contra um campo de refugiados matou 21 palestinos. De acordo com a agência de notícias estatal da Síria, o ataque foi proferido por "terroristas armados". No entanto, os palestinos afirmam que a ofensiva partiu de tropas leais ao ditador. Em nota oficial, o Hamas, grupo que controla a Faixa de Gaza, condenou o ataque.

A violência também prosseguiu em Aleppo, coração financeiro do país. As forças de Al-Assad usaram artilharia pesada, caças e helicópteros para bombardear posições do Exército Sírio Livre (ESL). "Violentos combates ocorrem no bairro Salaheddin. As tropas do regime tentam invadir o território, e o batalhão de rebeldes segue impedindo essa entrada. Tiros podem ser ouvidos no bairro de Saif Al-Dawla", afirmou o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH). De acordo com a ONG, explosões e trocas de tiros foram relatadas perto do Centro de Imigração e Passaportes, no bairro de Al-Merdyan. Rebeldes teriam conquistado um novo posto policial em Al-Zebdiya.

Sob fogo cruzado, civis de Aleppo relatam as dificuldades em obter artigos de primeira necessidade. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) divulgou um comunicado no qual lamenta as dificuldades na remessa de ajuda humanitária. "Era impossível ontem enviar artigos de ajuda adicionais, porque a cidade estava cercada", disse a porta-voz, Melissa Fleming.

Fragilidade

Apesar das violentas ofensivas do regime, o ESL afirma ter o controle de 50% de Aleppo. Os homens de Al-Assad, porém, seguem realizando um ataque constante e frio. Para o especialista em Oriente Médio da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Márcio Scalércio, tal tática pode enfraquecer os rebeldes, que contam com um aparato de armamento e artilharia limitado. "As notícias sobre a Síria que chegam no Ocidente são muito ruins, pois há pouca circulação de informações claras. O que eu tenho observado é que a superioridade militar do governo é muito maior. O nível de violência aumentou, e os rebeldes recebem armas e munição de fora. Mas o governo é forte, e acho difícil os insurgentes saírem vitoriosos", afirmou ao Correio.

O Irã culpou os EUA, além de países ocidentais e árabes, pelo fracasso do plano de paz. O chanceler Ali Akbar Salehi assegurou que essas nações não têm interesse na eficácia do plano. A Rússia pediu que a ONU encontre "com urgência" um sucessor para Annan. O pedido se deu no dia em que boatos relataram o envio de três navios russos com fuzileiros navais para a base de Tartus, na Síria. O Ministério da Defesa da Rússia negou a informação.

Depoimento

"Essa é a minha luta"

"Somos revolucionários, mas somos civis. Sírios que querem a liberdade, que desejam seguir em frente. A gangue de Al-Assad não vai desistir até destruir o país. Temos a certeza de que as próximas semanas serão as mais duras. Mas estamos mais organizados do que nunca e temos todas as possibilidades de ir além. A Síria mudou.

Eu reconheço a importância da vida, mas creio que existem coisas mais importantes do que focar na minha própria vida, que é ajudar os que precisam no meu país, na minha cidade e em meu bairro. É claro que sinto medo, e tento acostumar meus familiares com a ideia de que posso ser preso ou morto. Mas essa é a minha luta, e a luta da minha nação."

Samer Al-Husain, ativista e porta-voz da Agência de Notícias de Hama, na Síria

22.901 Total de mortos desde o início do levante, em 15 de março de 2011.

1.768 Número de crianças menores de 14 anos executadas pelas forças de Bashar Al-Assad