O globo, n. 31225, 02/02/2019. Artigos, p. 2

 

Justiça?

João Bernardo Kappen

02/02/2019

 

 

É preocupante, embora sintomático, que o Ministério da Justiça não tenha qualquer projeto de implementação de medidas que tenham por objetivo diminuir as injustiças no país. Nos presídios, por exemplo, onde diariamente milhares de presos têm seus direitos básicos violados, a começar pela superlotação. O Supremo Tribunal Federal recentemente declarou que há nos presídios brasileiros um estado de coisas inconstitucional, no sentido de que a situação que lá se encontra viola direitos e garantias individuais estabelecidos pela Constituição. Não há justiça hoje para quem está submetido às condições encontradas nos presídios brasileiros, segundo o que definiu o STF. E qualé a pro postado Ministério da Justiça para acabar coma falta de justiça dentro dos presídios, nos termos do que definiu o Supremo Tribunal? Ao que tudo indica, prender mais gente e mantê-las mais tempo presas. Nesse estado de coisas inconstitucional. Na contramão do mundo, aliás. Dos quatro países comas maiores populações carcerárias, oBra si léo únicoqu evem aumentando seu número de presos e oque proporcionalmente mais prendeu gente nos últimos 20 anos. Apesar do discurso recorrente de impunidade, nenhum país do mundo prendeu tanto como o Brasil vem prendendo ultimamente. O Congresso dos Estados Unidos, o país coma maior população carcerária do mundo, aprovou recentemente com o apoio de Donald Trump e dos partidos Republicano e Democrata uma lei para desencarcerar os presos federais. Vão soltar os presos que legalmente não precisam estar presos e passar aprender menos. China e Rússia caminham no mesmo sentido.

Por aqui, oque estamos vendos erimpl ementado no Ministério da Justiçaéo sintoma que revela a ideia que se tem do que seja justiça e do papel de cada um no sistema criminal. Nesse sentido, em estados democráticos de direito as atribuições de cada um dos atores da Justiça são bem definidas. No Brasil da Constituição de 1988, a polícia investiga, o Ministério Público fiscaliza a investigação, formula acusações, e os juízes julgam os casos que lhe são apresentados, garantindo aos acusados que o Estado não vai violar seus direitos fundamentais. Esseéo desenho constitucional atual do nosso sistema de Justiça criminal. E há uma razão para isso. Historicamente, o Ministério Público surge justamente para tirar das mãos dos juízes uma função que antes eles exerciam, ade promoção de investigações e acusações —o que lhes tornava absolutamente parciais diante da necessidade de julgar os indivíduos que haviam investigado e acusado. Assim, hoje, já não é papel do juiz combater o crime.

Há, no entanto, ainda, quem advogue abertamente no Brasil a ideia de que os juízes são sim combatentes do crime. Talvez isso explique o discurso monotemático do novo ministro da Justiça de combate ao crime. Como se justiça fosse sinônimo de prisão.

A ideia de justiça passa pelo entendimento de que políticas de prevenção do crime e de desencarceramento têm mui tomais efeito sobre a criminalidade e ar edução da violência urbana do que políticas de repressão e de encarceramento em massa. Até Trump e o Partido Republicano entenderam isso.

Com efeito, um dos significados de ministério, segundo o dicionário, é trabalho. Ou seja, quem vai trabalhar pela justiça precisa entender que onde direitos e garantias são violados não há justiça, que promover justiça não se resume a combater o crime, que cada um dos atores do sistema de Justiça criminal no Brasil tem um papel histórica e constitucionalmente bem definido, eque o mundo já entendeu que o encarceramento em massa não vai resolver os problemas da criminalidade.