O globo, n. 31235, 12/02/2019. País, p. 6

 

66 anos, jornalista - Ricardo Boechat

12/02/2019

 

 

Obituário

Colunista de grandes furos com três décadas no GLOBO, apresentador de TV, fenômeno no rádio e, sobretudo, repórter. Boechat morre em acidente aéreo após piloto de helicóptero tentar pouso de emergência em rodovia de São Paulo e bater em caminhão

Ricardo Boechat andava com desenvoltura pelos corredores do poder, jantares, onde quer que houvesse notícia — exclusiva, como se especializou em publicar ao longo de décadas à frente de colunas de notas, missão das mais complexas do jornalismo. O mesmo Boechat não hesitava em trocar os ambientes pomposos pelos quais os repórteres, por vezes, precisam circular por outro espaço que, naquele momento, parecesse mais relevante, como no dia em que, às pressas, deixou Paris em direção a Niterói.

Boechat estava na capital francesa, a serviço do GLOBO, e o trabalho se encerrara na sexta-feira. Hotel e alimentação estavam pagos pelos próximos dois dias, mas havia uma necessidade mais urgente do que aproveitar um fim de semana na Europa: jogar uma pelada no sábado de manhã, em São Francisco, Niterói.

— Criei um salseiro enorme na Varig para me arrumarem um lugar no voo de sexta à noite — lembrou o jornalista, em entrevista ao projeto “Museu da Pelada”.

O espírito rebelde — passou a fumar embaixo da mesa quando as redações proibiram cigarro e, certa vez, foi flagrado pulando um muro para jogar bola —não tirava o bom humor com que contava histórias aos amigos.

Entre uma partida e outra, foram mais de 40 anos dedicados à busca obsessiva pelo furo. Foi um dos jornalistas que participaram de um processo de transformação estilístico, em que as colunas sociais deixaram de relatar apenas histórias da elite e passaram a se debruçar sobre temas políticos, econômicos e da cidade em geral.

Na transição dos anos 1960 para os 1970, Boechat foi para o extinto jornal “Diário de Notícias”. Lá, conheceu Ibrahim Sued, ícone do colunismo, e com ele migrou para O GLOBO. Em três passagens, esteve por mais de 30 anos vinculado ao jornal. Foi titular da coluna do Swann —em 3 de maio de 1989, O GLOBO anunciou, na primeira página, a volta do jornalista para comandar o espaço —e, mais tarde, passou a assinar uma coluna com o próprio nome. No GLOBO, de onde saiu pela última vez em 2001, conquistou dois prêmios Esso, então a maior premiação do jornalismo. Em 1992, ao lado do jornalista Rodrigo Taves, desvendou um esquema em que o Exército faria uma licitação para comprar uniformes e outros itens superfaturados.

Em 2001, venceu, com Bernardo de la Peña e Chico Otavio, uma reportagem sobre as brechas na alfândega que permitiam a livre entrada de mercadoria contrabandeada no país. Boechat também venceu um prêmio Esso na sua passagem pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, quando, junto com os jornalistas Aluizio Maranhão, Suely Caldas e Luiz Guilhermino, denunciou irregularidades na BR Distribuidora.

Além de ter escrito um livro sobre o Copacabana Palace, Boechat trabalhou no “Jornal do Brasil”, onde foi editor-chefe, “O Dia”, TV Globo e SBT. Atualmente, apresentava o Jornal da Band, comandava um programa na rádio BandNews FM e mantinha uma coluna na revista IstoÉ. O rádio e a TV elevaram a popularidade de Boechat, e foi nas manhãs da BandNews que ele criou um novo estilo, mais próximo ao ouvinte — chegava a dar o próprio celular para receber informações. De tanto apurar, amigos brincavam que ele tinha calos na orelha.

Quando começou a trabalhar em redações, tinha um hábito peculiar.

— Eu ficava no jornal rigorosamente das 8h da manhã, quando não havia nada nem ninguém, até o ultimo dos linotipistas. O que eu ia fazer em Niterói? O mundo tinha mudado de foco para mim. Agora eu era um jornalista — disse Boechat, em depoimento ao Memória Globo.

Aos colaboradores de sua coluna no GLOBO, Boechat definia a matéria-prima da profissão.

— Notícia é a contramão do óbvio —dizia.

Fora das redações, teve uma passagem rápida na gestão de Moreira Franco, então governador do Rio. Nomeado secretário de Comunicação Social, em 1987, deixou de ir atrás das fontes e passou, ele mesmo, a ser procurado pelos jornalistas. A amigos, relatava que não tinha gostado da experiência de estar “do outro lado do balcão”.

Em seu último comentário na rádio BandNews FM, na manhã de ontem, Boechat falou sobre as tragédias recentes. Citando a manchete do GLOBO de ontem —“Negligência e impunidade marcam tragédias no país” —, criticou a falta de punição no Brasil:

—A impunidade é o que rege, o que comanda as orquestras das tragédias nacionais.

Tragédia

Nascido em Buenos Aires e criado em Niterói, Ricardo Boechat morreu ontem, aos 66 anos, vítima de um acidente aéreo. Ele voltava de helicóptero para São Paulo, depois de uma palestra em Campinas (SP), quando a aeronave tentou fazer um pouso de emergência na Rodovia Anhanguera e bateu em um caminhão. O piloto Ronaldo Quattrucci também morreu. O motorista do caminhão sobreviveu. Boechat deixa a mulher, Veruska, e seis filhos.

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Aeronave não tinha permissão da Anac para transportar passageiros

Flávio Freire

Sérgio Roxo

12/02/2019

 

 

O helicóptero que caiu ontem em São Paulo, levando à morte o jornalista Ricardo Boechat, não tinha autorização para fazer transporte de passageiros.

Segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a empresa dona da aeronave (R Q Serviços Aéreos Especializados) não poderia faz eratividade remunerada, anão ser de“aerofotografia, a e ror reportagem, a ero filmagem, entre outros do mesmo ramo”. O piloto Ronaldo Quattrucci também morreu.

A agência confirmou ainda que abriu procedimento administrativo para apurar o tipo de transporte que estava sendo feito no momento do acidente. No entanto, de acordo como Registro Aeronáutico Brasileiro( R AB ), a aeronaveestava como Certificado de Aeronavegabilidade válido, bem como a Inspeção Anual de Manutenção em dia.

O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), da Aeronáutica, abriu investigação. Agentes foram ao local para fotografar e recolher materiais.

Uma testemunha relatou ao portal G1 que, logo após a colisão com o solo, Boechat chegou a sair da aeronave. O helicóptero, que já vinha falhando e perdendo altura, vinha de Campinas (SP), onde o jornalista fez palestra na manhã de ontem, em evento de empresa da indústria farmacêutica.

—Uma pessoa pulou do helicóptero, e o piloto ficou dentro. A pessoa pulou na pista, caiu no chão, e o helicóptero caiu em cima dela — afirmou a vendedora Leilaine Rafael da Silva, que prestou depoimento à polícia.

Já o motorista do caminhão atingido pelo helicóptero afirmou que não viu a aeronave caindo e só depois foi saber o que havia atingido seu veículo.

—Eu senti aquele estrondo em cima da cabine. Tentei parar o caminhão. Nem eu sabia o que estava acontecendo. Alguém gritou que era um helicóptero, mas eu disse: “Não pode estar acontecendo de um helicóptero cair em cima de um caminhão”. Mas, infelizmente, foi isso.

Um helicóptero da mesma empresa fez um pouso forçado em uma rodovia de São Paulo, em 2010. O acidente foi provocado por uma falha no motor, mas ninguém ficou ferido. Já o irmão do piloto, Rogério Quatrucci, que também pilotava, morreu em um acidente de helicóptero em 1998. A aeronave bateu em um morro em Santana do Parnaíba (SP).