O Estado de São Paulo, n. 20288, 07/12/2018. Mundo, p. 12

 

Cuba se abre para o capital privado

Jorge Vasconcellos

07/12/2018

 

 

AMÉRICA LATINA » O presidente Miguel Díaz-Canel flexibiliza as normas que restringiam o trabalho por conta própria e cria pacote com 20 leis para regular a atividade em seis setores. Medida é adotada para atrair investimentos estrangeiros e movimentar economia

Depois de cinco meses de questionamentos de empreendedores e especialistas, um pacote com 20 leis entra em vigor hoje, em Cuba, com o objetivo de normatizar a iniciativa privada na ilha comunista. O governo do presidente Miguel Díaz-Canel chegou a fazer concessões de última hora, anteontem, para amenizar as novas regras. Os regulamentos introduzem mudanças para um maior controle e organização em relação a pontos, como impostos e contratação de força de trabalho, além de limitarem o escopo de cada atividade — 123 no total — e definir novas contravenções. Embora as autoridades tenham buscado exaustivamente explicar as novas normas, publicadas em 10 de julho, ainda há muita perplexidade, pouco após o fim do debate popular do projeto de uma nova Constituição.

O controle mais rígido sobre o setor privado foi uma decisão motivada por preocupações do governo com o acúmulo de riqueza, a sonegação fiscal e outras irregularidades — efeitos colaterais das reformas de mercado impulsionadas há oito anos. No entanto, houve uma frustração generalizada diante de algumas restrições, sobretudo a limitação de uma licença comercial por cubano e a exigência de uma conta bancária fiscal. As duas normas foram parcialmente revogadas, em uma tentativa de arrefecer as críticas.

O recuo do governo em relação à licença comercial foi determinado pela ministra do Trabalho e da Seguridade Social, Margarita González, por meio de resolução no Diário Oficial. “As pessoas naturais podem ser autorizadas a exercer mais de uma atividade, desde que cumpram o regulado para o exercício do trabalho por conta própria”, afirma a publicação.

As questões envolvendo a iniciativa privada afetam quase 589 mil trabalhadores autônomos em Cuba, o correspondente a 13% dos ocupados no país. A aplicação das medidas é feita em um contexto de dificuldade econômica: o crescimento não parece superar o 1,1%, e o Estado se mostra especialmente interessado em atrair investimentos estrangeiros.

O “pacotaço” causou tanta confusão e preocupação que a Auge, uma consultora privada de negócios, teve de fazer um resumo para ajudar seus clientes a digeri-lo. Coube à ministra das Finanças e dos Preços, Meisi Bolaños, a flexibilização da exigência de uma conta bancária fiscal. Segundo resolução publicada no Diário Oficial, a alteração foi promovida “visando evitar dispersão legislativa”.

 

Obrigatoriedade

Em declarações à televisão, Bolaños explicou que a conta será obrigatória apenas para seis atividades: serviço em restaurantes, cafeterias e bares; recreação; locação de imóveis e serviços de construção. Isso afeta cerca de 80 mil pessoas, ou 13% do setor privado. São “atividades complexas em sua operação, não apenas porque geram alta receita, mas porque também geram gastos”, acrescentou o texto oficial.

Ainda de acordo com Bolaños, a abertura e a operação dessas contas será “gradual”. Nelas, o titular movimentará as operações mercantis de seu negócio, podendo ter outras contas bancárias pessoais e independentes. As medidas teriam por objetivo evitar a evasão fiscal e impedir o enriquecimento pessoal, mas também ampliam os requisitos burocráticos.

O delicado tema da concentração da riqueza está presente nos documentos programáticos de reformas econômicas, aprovados pelo Partido Comunista (PCC) e pelo Parlamento. Também consta do texto da nova Constituição, que será aprovada em um referendo em 24 de fevereiro.

“Reconheço que o governo tenta destravar algumas restrições para a atividade econômica, mas essas medidas terão efeito apenas na microeconomia”, disse ao Correio o engenheiro cubano Nelson Yanet, pós-doutorando na Universidade de Brasília (UnB). “Elas atingem apenas alguns trabalhadores, como taxistas e vendedores. No entanto, eu, como engenheiro, não estou autorizado a abrir uma empresa de engenharia em Cuba, da mesma forma que médicos não podem abrir um consultório, e professores são proibidos de montar uma escola”, acrescentou.

 

Internet pelo celular se torna realidade na ilha

Cuba, um dos países do mundo com acesso mais restrito e controlado à Internet, oferece a seus habitantes, desde ontem, a oportunidade de se conectar por meio do celular, mas com um custo elevado à população. “A partir de 6 de dezembro, começamos a oferecer serviços de Internet em telefones celulares”, disse Mayra Arevich, presidente da estatal de telecomunicação Etecsa. A empresa tinha feito vários testes de 3G nos últimos meses, mas o exame final, no começo de setembro, oferecendo acesso gratuito durante 72 horas a 1,5 milhão de usuários, encontrou “dificuldades de conexão e congestionamento significativo dos serviços de voz e dados, devido à instabilidade de parte da rede”. A tarifa proposta será de 10 centavos por megabyte — reduzido a dois centavos em portais cubanos —, com pacotes que vão de sete dólares por 600 megabytes a 30 dólares por quatro gigabytes.

 

As novas e controversas leis

Saiba quais são as novas normativas legais para o trabalho privado que entrarão em vigor amanhã

 

Algumas atividades permitidas foram fundidas, e o número total passou de 201 a 123.

Cada pessoa poderá exercer mais de uma atividade, desde que sob controle do Estado.

O governo manteve a obrigatoriedade de conta bancária fiscal, a partir da qual seria feita a dedução de impostos, para seis setores: restaurante; cafeterias e bares; recreação; locação de imóveis e serviços de construção.

Será obrigatório um contrato trabalhista legalizado para empregar mão de obra, o que implica o pagamento de seguridade social e impostos.

Os autônomos poderão vender serviços a entidades estrangeiras — que são cada vez mais numerosas na ilha —, desde que cumpram um número de exigências.

Cria-se um novo procedimento para obter uma licença, que em alguns casos inclui uma declaração jurada sobre a origem do capital de investimento e requisitos sanitários.

Elimina-se a isenção tributária por contrato de até cinco funcionários, o que era estimulante para os pequenos negócios e para combater o desemprego.

São especificadas as possíveis infrações em cada atividade e introduzidas novas sanções. O valor das multas também é elevado — entre elas, nos serviços artísticos.