O globo, n. 31203, 11/01/2019. País, p. 4

 

Armas para quase todos

Igor Mello

Marlen Couto

11/01/2019

 

 

Posse pode ser um direito em pelo menos 3 mil cidades

O governo federal deve flexibilizar a posse de armas de fogo para moradores de cidades violentas e áreas rurais, além de servidores públicos que exerçam funções com poder de polícia e proprietários de estabelecimentos comerciais. O texto preliminar do decreto foi divulgado ontem pelo SBT.

Dados do IBGE e do Ministério da Saúde cruzados pelo GLOBO mostram que pelo menos 169,6 milhões pessoas — quatro em cada cinco brasileiros — podem ser diretamente afetados caso seja mantida no texto a possibilidade de acesso a armas por moradores de cidades com taxas de homicídios superiores a dez mortes para cada 100 mil habitantes. Ao todo, 3.179 dos 5.570 municípios estão acima desta linha de corte.

Segundo o texto do decreto ainda em análise, os interessados podem ter até duas armas em casa. A efetiva necessidade de possuir um armamento passa a incluir automaticamente residentes em áreas rurais, proprietários ou responsáveis legais por estabelecimentos comerciais, além de servidores públicos que tenham funções com poder de polícia.

No caso de residências onde vivem crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência mental, o texto preliminar prevê a obrigação de que o proprietário da arma tenha um cofre para guardála. O decreto manterá outras exigências para a obtenção da posse, como a idade mínima de 25 anos e a comprovação de capacidade técnica e psicológica para manusear o armamento.

Após uma reunião com Bolsonaro na manhã de ontem, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse apoiar a medida.

— Sou favorável. Parece que sai amanhã (hoje) — afirmou o governador.

Em 13 estados, mais de 90% da população vivem nas cidades afetadas diretamente pela nova legislação. Nesse grupo estão o Rio de Janeiro, que sofreu uma intervenção federal na segurança pública em 2018, além de Bahia, Pernambuco e Ceará — que passa por uma onda de ataques articulados por facções criminosas nos últimos dias.

Todos os estados

A norma também vai facilitar o acesso a armas de fogo em 39 das 41 maiores cidades brasileiras — ficam de fora apenas Santo André e São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Somente nessas metrópoles vivem mais de 60 milhões de pessoas.

Nas menores cidades, menos da metade da população das cidades com menos de 10 mil moradores se enquadra neste critério. Porém, o decreto abre a possibilidade para a obtenção da posse de armas também nessas localidades, já que acaba com a comprovação de efetiva necessidade para todos os residentes em zonas rurais.

Há uma brecha maior no decreto para que ainda mais pessoas tenham o acesso a armas facilitado. Caso o critério utilizado pelo governo federal seja o das taxas de homicídios dos estados ao invés dos municípios, todo o país seria incluído, de acordo com dados compilados no Anuário da Violência 2018.

Em 2017, a taxa de homicídios no Brasil foi de 30,8 mortos a cada 100 mil habitantes. Até mesmo São Paulo — estado com 10,7 mortes a cada 100 mil habitantes, a menor do país —se enquadra no parâmetro do decreto.

Para Melina Risso, diretora de Programas do Instituto Igarapé, a nova regulamentação de posse de armas terá consequências negativas para a segurança porque vai “na contramão” do que mostram os estudos sobre o tema:

— A primeira questão é o que decreto vai contra o que as evidências científicas mostram. Quanto mais armas em circulação, mais crimes.

Melina ainda destaca a falta de informações sobre o número de pedidos de posse de armas aceitos e negados nos últimos anos:

—Nós não sabemos quantos pedidos foram negados e nem os motivos para isso.

Em 2018, a Polícia Federal concedeu, entre pedidos novos e revalidações, 258.427 registros de posse de arma para a população civil no Brasil — 48.330 foram novos registros e 210.097 foram revalidações.

Bene Barbosa, presidente da ONG Movimento Viva Brasil avalia que o decreto não resolve todos os problemas do Estatuto do Desarmamento, mas é positivo:

— Já é um avanço, porque mostra uma intenção de mudar. Pelo menos é um critério objetivo, porque até agora tínhamos critérios subjetivos para a posse.

As atuais regras e como podem ficar as autorizações

> Hoje, para ter posse de arma, é preciso declarar a “efetiva necessidade”, explicando em requerimento os motivos que justificam o pedido. A PF pode autorizar ou negar.

> A validade do registro é de cinco anos. É preciso comprovar capacidade técnica e psicológica, não ter antecedentes criminais e ter idade mínima de 25 anos. Cada pessoa pode comprar no máximo seis armas, com limitações de modelo e calibre.

> Pelas regras em estudo no governo, determinadas situações vão automaticamente justificar a necessidade, tais como morar em área rural, em locais violentos e ter funções ligadas à segurança.

> A validade passa a ser de dez anos. O número de armas cai para duas. Idade mínima, atestados de capacidade psicológica e técnica permanecem.