Correio braziliense, n. 20269 , 18/11/2018. Sociedade, p.4

O nascimento de um mito

Paloma Oliveto

 

 

Entre os brasileiros, a palavra ganhou novos sentidos. Na internet, mudou até de classe gramatical — de substantivo, passou a verbo. “Mitar”, na linguagem das redes, significa fazer algo extraordinário. Também no ambiente on-line, mito foi anexado ao nome do presidente eleito, originando o neologismo “Bolsomito”. Embora seja uma brincadeira dos admiradores de Jair Bolsonaro, especialistas dizem que, mais uma vez, o país vê surgir o fenômeno da idealização de uma figura política, sobre a qual parte da sociedade depositar a esperança de expurgação de todos os males que a aflige.

Mitos são fabricados desde o início da evolução do Homo sapiens. De acordo com André Azevedo da Fonseca, professor da pós-graduação da Universidade de Londrina e pesquisador de cultura política e mitologias contemporâneas, recorre-se a eles para compreender o inexplicável — como faziam os gregos antigos com os fenômenos naturais — e para simplificar o mundo. “Quando a sociedade está em crise, as pessoas ficam vulneráveis e não sabem o que fazer. Tentam criar um sentido para aquele mundo e, para isso, servem-se dos mitos”, diz. Esse recurso independe de grau de instrução, ressalta. “Veja o nazismo, que ocorreu na Alemanha”, exemplifica, referindo-se ao fato de a ascensão de Hitler ter acontecido em uma nação culta e com nível alto de escolaridade.

Embora o totalitarismo seja um risco associado aos mitos independentemente de posicionamento político à direita ou à esquerda, nem sempre a criação deles tem relação com ideologias nefastas, como o nazismo. Um exemplo é o alferes e barbeiro mineiro Joaquim José da Silva Xavier, mitificado 200 anos depois de morto. “Ele incorpora o mito político do revolucionário, daquele homem inconformado com a situação política de seu tempo, que decidiu desafiar o governo opressor para promover uma revolução que mudasse tudo”, explica o historiador Leandro Vilar, autor de artigos sobre mitologias publicados em periódicos acadêmicos.

Tiradentes é apontado por André Azevedo da Fonseca, inclusive, como o primeiro mito da República brasileira. “Os republicanos precisavam mobilizar a imaginação do povo, que tinha muita simpatia por D. Pedro II. Então, começaram a trabalhar deliberadamente mitos para levar sentido à República”, diz. O alferes mineiro, que jamais lutou por essa causa, foi, então, escolhido para encarnar o ideal republicano, transformando-se em herói póstumo da nação.

O século 20 foi pródigo na criação de mitos políticos, observa o historiador Rodrigo Coppe Caldeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas. Ele explica que nos anos 1800, o Ocidente passou por um movimento de secularização, que deixou um vazio messiânico. “Isso abriu um campo de ‘religiões políticas’. As ideologias se tornaram praticamente religiões, com a perspectiva de libertação, salvacionismo, de começar de novo, além, é uma salvação que se dá aqui na Terra.”

 

Salvação

Caldeira observa que, em momentos de crise, esse papel salvífico pode ser ocupado por uma figura que dá voz aos anseios imediatos da população e toma para si a função de solucionador de todas as questões, ainda que isso seja humanamente impossível. No fim da década de 1990, por exemplo, Fernando Collor de Mello, um político então incipiente, emergiu em um país que sofria com a hiperinflação — por sinal, uma consequência do mito do “milagre econômico” do regime militar — e poder de compra cada vez mais reduzido, ao mesmo tempo em que alguns funcionários públicos recebiam salários milionários. Jovem, esportista e bonito, Collor usou o discurso em favor dos “descamisados” e contra os “marajás”. Concorreu com políticos conhecidos, como Luiz Inácio Lula da Silva, Leonel Brizola e Paulo Maluf, e terminou eleito, com 53% dos votos.

Mitos, porém, podem despencar na mesma proporção da devoção recebida. Segundo os especialistas, ao identificarem falhas humanas naqueles que endeusaram, os eleitores podem querer destruí-los furiosamente. Foi assim com Collor, destituído do poder com dois anos de mandato, tem sido assim com Lula, outro mito da política moderna que, embora ainda admirado por milhares de pessoas, amarga, da carceragem da Polícia Federal em Curitiba, a rejeição de muitos que, em outras épocas, apostaram nele todas as fichas. “O ciclo de mitos políticos é interminável. Sempre que cai um, surge outro. Nessa dinâmica, enquanto um é o que vai expurgar os problemas, busca-se um bode expiatório para colocar a culpa de tudo. No nosso horizonte, o PT foi transformado nesse bode”, acredita Caldeira.