O globo, n. 31148, 17/11/2018. Artigos, p. 2

 

Uma crise política

Merval Pereira

17/11/2018

 

 

A crise que pode afetar milhões de brasileiros coma saída imediata dos médicos cubanos deve ser atribuída, em primeiro lugar, ao governo de Cuba, que decidiu usar os carentes brasileiros para retaliar um governo de direita que venceu a eleição presidencial com críticas ao programa e a Cuba.

Ficou claro que o governo Bolsonaro iria exigir que os médicos cubanos fizessem o teste para revalidação do diploma, com o que Cuba não concorda. A exigência não tem base ideológica, mas as críticas ao que seria “trabalho escravo” dos médicos, sim.

A forma de pagamento do trabalho, como governo cubano ficando coma maior par tedo salário, e a proibição de que as famílias dos médicos viajem junto representam uma atitude de governo que não se coaduna com os hábitos e costumes de uma democracia, com uma ameaça implícita aos que deixaram suas famílias por lá.

A saída poderia ter sido anunciada com antecedência, para não deixar desamparados os milhões de brasileiros atendidos pelos médicos nos rincões do país. A solução, porém, é mais fácil do que parece.

No lugar dos cerca de oito mil médicos cubanos que deixarão o país, basta convocar imediatamente os cerca de oito mil médicos que se candidataram na mais recente seleção para o programa, para apenas 983 vagas oferecidas aos brasileiros.

O programa, na verdade, pode ser feito integralmente por profissionais brasileiros, pois o fato é que o país não tem falta de médicos, mas o problema é a má distribuição deles pelo território nacional. Mais da metade está no eixo MG, RJ, SP, PR, SC E RS.

Segundo o médico Marco Lages, do Hospital Miguel Couto, no Rio, temos mais que o dobro da recomendação da Organização Mundial de Saúde. Em vez de um mínimo de 1 para cada mil habitantes, temos 2,18. O problema começa por um dos princípios do SUS, transferira responsabilidade da gestão da saúde par acada município ou estado. Um médico que aceita proposta de uma prefeitura para trabalhar em outra cidade larga tudo paras e transferir para essa região, não tem garantias e pode se dar mal quando muda o prefeito ou acaba averba. Lages diz que essa situação é comum.

Com achegada do Mais Médicos, diversos desses brasileiros foram demitidos para a contratação de cubanos. A fonte do pagamento passou a ser o governo federal, os estados e municípios ficaram sem esse gasto. Além disso, o governo federal tinha o interesse político de usar o programa cubano, que é uma das maiores fontes de recursos de Cuba, a exportação de mão de obra médica. O médico Marco Lages diz que a alocação de médicos brasileiros poderia ser organizada com um plano de carreira de Estado, que Bolsonaro prometeu na campanha presidencial. A formação desse médico cubano, que se transformou em um produto de exportação tão ou mais importante que a cana-de-açúcar e o tabaco, é criticada pelo Conselho Federal de Medicina, que os vê como técnicos preparados para emergências, mas não coma formação completa, e por isso o Revalida deveria ser um filtro.

O médico Francisco Cardoso, perito previdenciário em São Paulo, escreveu um artigo no portal do Conselho Federal de Medicina no início do programa Mais Médicos contando a origem desses médicos cubanos, profissionais forma dosem“saúde básica ”, que trabalham em áreas remotas, rurais e periferias, combas e em experiências bastante antigas feitas na Alemanha ena antiga União Soviética. São, segundo ele, práticos de saúde, ou paramédicos como são chamados hoje em dia, e exerciam cuidados básicos junto às populações dessas regiões.

Lages relembra que não somos o único país continental com problemas de acesso à saúde no interior. Canadá e Austrália passam por isso também. E como eles resolveram? Com médicos estrangeiros, mas com uma diferença: todos são avaliados em duas ou três fases antes de assumir o emprego no Yukon ou no Outback, ambientes tão inóspitos quanto a Caatinga ou a Selva Amazônica. Seria até possível usar paramédicos ou técnicos médicos para uma ação de emergência em áreas carentes nos rincões brasileiros. Seria possível também fazer trabalhos sociais em regiões inóspitas, dentro do espírito de pagar o financiamento do Fies estimulado pelo governo, co moestá em estudos. Já sabemos que, no momento, existem pelo menos oito mil médicos brasileiros querendo trabalho.