Correio braziliense, n. 20240 , 20/10/2018. Economia, p. 9

 

Dinheiro público gasto sem critério

Simone Kafruni e Alessandra Azevedo 

20/10/2018

 

 

De 2008 a 2017, a União empenhou R$ 13,88 bilhões, dos quais R$ 6,12 bilhões já foram pagos, em repasses à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano sem que os desembolsos apresentassem justificativas plausíveis ou que a execução das obras fosse adequadamente monitorada. Foram mais de 25 mil contratos firmados ao longo de 10 anos. Entre 2014 e 2017, 87% dos repasses foram para obras de pavimentação urbana e recapeamento, sendo que, nos últimos três anos, 85% partiram de emendas parlamentares. Para especialistas, o mais preocupante, no entanto, é que esse é o primeiro trabalho que avalia a eficácia de políticas públicas no país.


Os dados são de uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União com apoio de 16 secretarias de controle externo do órgão pelo país. Conforme o coordenador da fiscalização, Martin Mastelaro, auditor da Secretaria de Controle Externo de Mato Grosso, a avaliação de políticas públicas ainda é incipiente no Brasil. “É a primeira vez que uma auditoria deste porte é feita. Desconheço outro trabalho que tenha analisado as quatro fases de uma política pública (formulação, implementação, controle e monitoramento)”, disse.

Superfaturamento

Tanto a fiscalização é inédita, que a equipe sequer tinha um referencial e teve de usar normativos da Inglaterra. “Buscamos saber qual problema a política visava resolver, sua extensão, suas causas, seus efeitos. Tentamos identificar se foram consideradas alternativas, outros modelos, opções com melhor custo-benefício”, explicou Mastelaro. A conclusão é de que isso não aconteceu. Além disso, irregularidades ainda mais graves foram apontadas no relatório.

Dos 25 mil contratos, os técnicos auditaram uma amostra de 40, na qual encontraram 99 irregularidades — sobrepreço, superfaturamento, execução de qualidade duvidosa e outras (veja quadro). “Pelos dados revelados, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano se tornou mera fonte de recursos “para pavimentação urbana conduzida, em grande parte, por parlamentares federais”, disse Mastelaro.

O auditor do TCU detalhou que prestação de contas são feitas, mas são pulverizadas e não há controle. “Monitorar o resultado não é simplesmente saber se a obra foi entregue ou não — mas se contribuiu para o objetivo-chave da política, provocou a transformação estrutural pretendida. Mastelaro destacou, ainda, que a auditoria é um projeto-piloto. “Se o tribunal verificar que gerou benefícios é bem provável que ela seja replicada em outras políticas públicas”, disse.

A dúvida, entre especialistas, é por que essa política só começou a ser implantada agora. “Auditoria ajuda, mas por que não fizeram isso anos atrás?”, questionou Geraldo Biasoto, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-coordenador de Política Fiscal do Ministério da Fazenda. Ele diz que deveria haver um acompanhamento constante dos repasses da União. “Emendas parlamentares existem há anos. Só agora, o TCU está se preocupando com isso? É preciso uma iniciativa mais constante e mais produtiva. Precisamos de estruturas que ajam mais rapidamente, que detectem o erro e avaliem na hora, não 10 anos depois”, criticou.

Biasoto acredita que deveria haver um órgão responsável pela “triagem” das emendas, que só incluísse os valores no orçamento depois de uma avaliação de custo-benefício, como acontece no Chile. “É o mínimo. O Brasil tem plenas condições de implementar isso, por lei, o que falta é interesse”, destacou. O professor ressaltou que o problema não está apenas nas emendas. “Órgãos do governo também fazem isso. Também picam o dinheiro e colocam em vários projetos. Quem sabe melhor o que fazer? O parlamentar? O burocrata? O problema não está aí”, sentenciou.

O secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castelo Branco, diz que não costuma haver muito critério técnico na destinação das emendas. “Em muitas ocasiões, elas atendem ao interesse do parlamentar, não da comunidade. Há uma pulverização de recursos, que nem sempre trazem os benefícios esperados”, explicou.

Castelo Branco lembra que o controle sobre emendas é muito menor do que sobre um convênio comum, feito diretamente entre o governo e uma prefeitura, por exemplo. “A emenda é inserida no orçamento por deputados e senadores; então, acaba sendo objeto de negociação política”, pontuou. Além disso, os valores costumam ser liberados “a conta-gotas”, geralmente “nas horas em que o governo está precisando de apoio”.

Outro lado

Em nota, o Ministério das Cidades disse que, “em relação à fiscalização, o ministério dispõe de um contrato de prestação de serviços com a Caixa Econômica Federal, a qual nos representa junto aos estados, municípios e Distrito Federal, na operacionalização dos programas”, afirmou, em nota.

“O Ministério das Cidades trabalha somente com contratos de repasse, isto é, os recursos só são liberados quando já existe um projeto de engenharia analisado e aprovado pela Caixa (mandatária da União) e todo o processo de licenciamento é regularizado, com a licitação devidamente aprovada nos termos da Lei nº 8.666/93. Cabe ressaltar que os recursos somente são liberados conforme a evolução física das obras.” A pasta também ressaltou que o “custo-benefício de uma determinada obra vai ser avaliado a partir da conclusão, pois não é considerada apenas a despesa, mas também todo o retorno que o investimento vai trazer e os impactos positivos de médio a longo prazo”.