O Estado de São Paulo, n. 45678, 09/11/2018. Metrópole, p. A20

 

DNA muda rosto da pré-história do País

Herton Escobar
09/11/2018

 

 

 Recorte capturado

Análise genética de esqueletos do povo que viveu entre 12 mil e 9 mil anos atrás em Minas concluiu que Luzia não tinha feições africanas

Dados genéticos extraídos do DNA de esqueletos enterrados em uma caverna de Minas Gerais estão dando uma nova cara à pré-história brasileira e, além disso, ajudando a reescrever 20 mil anos de história do povoamento das Américas.

O resultado mais surpreendente diz respeito ao chamado Povo de Luzia, que habitou a região de Lagoa Santa, perto de Belo Horizonte, entre 12 mil e 9 mil anos atrás, e cujo nome do grupo faz referência a Luzia, uma mulher de 20 e poucos anos, cujo crânio foi encontrado por arqueólogos na década de 1970 – e quase destruído no incêndio do Museu Nacional, no Rio, há dois meses.

Contrariando algo que vinha sendo proposto há mais de duas décadas, com base principalmente em análises morfológicas do crânio de Luzia, as novas evidências genéticas sugerem “de forma categórica”, segundo os pesquisadores, que não há relação de parentesco entre o Povo de Luzia e populações antigas da África ou da Austrália.

“A hipótese de que o Povo de Luzia representaria uma leva migratória anterior aos ancestrais dos indígenas atuais não se confirma”, afirmam os autores brasileiros do estudo, publicado ontem na revista Cell. “Pelo contrário, o DNA mostra que o Povo de Luzia tem genética totalmente ameríndia.”

Aquela famosa reconstrução facial do crânio de Luzia, concebida na década de 1990, com características notadamente negroides, portanto, está equivocada, diz o pesquisador André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), que há anos realiza escavações arqueológicas em Lagoa Santa e é um dos coordenadores do estudo.

Para substituí-la, pesquisadores encomendaram uma nova reconstrução, baseada em um outro crânio de Lagoa Santa e levando em conta novas evidências genéticas. O resultado foi um rosto com morfologia muito mais “genérica”, da qual teriam se originado “inúmeras variantes intracontinentais”. “É uma espécie da tábula rasa, ou tela branca, que com o passar dos milênios foi sendo moldada de diversas formas em diferentes populações”, diz Strauss.

As reconstruções faciais arqueológicas são baseadas em características morfológicas do crânio e da mandíbula, mas também levam em conta as hipóteses de ancestralidade do indivíduo – que vão influenciar, por exemplo, características como a espessura dos lábios e o formato do nariz.

A dúvida sobre a origem do Povo de Luzia surgiu na década de 1990, quando o antropólogo Walter Neves, da USP, descreveu o crânio de Luzia como dotado de uma morfologia predominantemente negroide e com 11,5 mil anos de idade – mais antigo do que qualquer outro encontrado nas Américas até então. Neves postulou que Luzia e seu povo eram representantes de uma onda migratória anterior à que deu origem aos ameríndios modernos.

Essa primeira migração, segundo ele, teria chegado pela mesma rota do Estreito de Bering – ou seja, também da Ásia –, mas seria composta de indivíduos que ainda preservavam morfologia negroide. Foi essa hipótese que norteou a reconstrução facial de Luzia em 1999, conferindo a ela aparência mais africana do que asiática.

Naquela época, ainda não havia a possibilidade de se analisar o DNA de fósseis humanos, como se faz agora com a chamada “arqueogenética”. As análises, portanto, eram baseadas apenas na morfologia dos ossos e nas informações arqueológicas associadas a eles. Neves foi procurado pela reportagem, mas preferiu não se pronunciar.

Segundo Strauss, Neves (que foi seu orientador de mestrado no Instituto de Biociências da USP) estava certo ao propor que o Povo de Luzia representava uma população diferenciada e que eventualmente desapareceu, substituída pelos ancestrais de ameríndios modernos.

A genética associada ao Povo de Luzia, de fato, desaparece do continente 9 mil anos atrás. A diferença, diz, é que a origem dela não estava na África, mas na América do Norte.

Clóvis. Outra descoberta surpreendente diz respeito ao povo da cultura Clóvis, que floresceu na região dos Estados Unidos cerca de 13 mil anos atrás e ficou famosa pela confecção de pontas de lança de pedra lascada. Acreditava-se que essa população tinha ficado restrita à América do Norte, mas dados genéticos de Lagoa Santa e outros dois sítios arqueológicos revelam que o povo de Clóvis migrou também para as Américas Central e do Sul, a partir de 12 mil anos atrás, dando origem a novas populações – entre elas, o Povo de Luzia.

As pontas de pedra lascada aparentemente ficaram para trás, já que nenhuma até hoje foi encontrada mais ao sul do que o México, mas a genética Clóvis seguiu em frente. Essa é a grande vantagem da arqueogenética, diz Strauss: “Ela nos permite enxergar coisas invisíveis para a arqueologia clássica.”

Novas evidências genéticas sugerem que os povos originais do continente americano descendem de uma mesma população ancestral, de origem asiática Cultura Clóvis