O globo, n. 31133, 02/11/2018. Artigos, p. 3

 

Brutalidade produz luto

Flávia Oliveira

02/11/2018

 

 

Governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel acerta ao propor que a Polícia Civil seja equipada para investigar a movimentação financeira dos grupos civis armados do tráfico de drogas e, espera-se, das milícias. “Follow the money” (siga o dinheiro, em livre tradução do inglês) é receita popularizada no eterno “Todos os homens do presidente” — produção hollywoodiana de 1976 sobre o escândalo de Watergate, que levou à renúncia do então presidente americano, Richard Nixon — e ainda hoje evocada em investigações sobre o crime organizado. Em entrevista ao “Estúdio i”, na GloboNews, Witzel anunciou a intenção de aproximar as forças de segurança do estado da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para acompanhar o fluxo de recursos das atividades criminosas que sequestraram o Rio.

Asfixiar financeiramente e desarticular a cadeia de comando das quadrilhas via investigação são estratégias efetivas em políticas de segurança pública. O alinhamento das forças locais com Polícia Federal e Polícia Rodoviária para coibir a entrada de entorpecentes e armamento ilegal é igualmente bem-vindo. Mas, desde a campanha e, agora, mais que nunca, o debate sobre a mais grave crise fluminense foi monopolizado pela proposta que, além de dobrar a aposta na brutalidade, flerta com a ilegalidade.

Duas linhas no programa de governo desencadearam o apaixonado debate sobre a “autorização para abate de criminosos portando arma de uso exclusivo das Forças Armadas” nos termos do Artigo 25 do Código Penal. O texto classifica como legítima defesa o ato de quem “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Ex-juiz federal, o governador eleito se atribuiu o direito de, com base em livre interpretação da lei, autorizar policiais a executar criminosos avistados com fuzis e oferecer-lhes defesa nos tribunais.

Qual predador exposto ao cheiro do sangue, a sociedade salivou. Acuados pela violência e habituados ao extermínio, homens e mulheres abraçaram a ideia e apequenaram o debate. Wilson Witzel foi eleito com quase 60% dos votos válidos no estado nocauteado pela corrupção e pela escalada de violência que se materializa em mortes nas favelas, no asfalto e nas famílias de policiais. Erra ao usar frases de efeito para defender a solução simplista e sem respaldo legal que, em vez de debelar, pode agravar a epidemia homicida. Daniel Cerqueira, economista no Ipea e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, escreveu no “El País”:

“A guerra retórica e a licença para matar alimentam a demanda por armas de alto poder destrutivo pelos criminosos. Pavimenta-se assim uma espiral crescente de violência e mais violência com as mortes de supostos criminosos, mas também de civis e de policiais”.

O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, já declarou publicamente que a política de abate por snipers não está dentro das normas: “Hoje, não está. Precisa de modificação legislativa”. A Anistia Internacional alertou que a proposta “afronta a legislação brasileira e internacional e desrespeita as regras de uso da força e de armas de fogo”. Ignacio Cano, professor da Uerj e especialista em segurança, diz que a Lei do Abate significaria rasgar a Constituição e os tratados dos quais o Brasil é signatário por adotar a pena de morte imediata e sem julgamento pelo delito de porte de armas.

O Rio já experimentou resultados decrescentes no número de homicídios nos melhores anos do programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que nasceu e foi a pique na gestão de Sérgio Cabral Filho. Em 2015, a taxa de letalidade violenta em áreas de UPP foi de 21,3 vítimas por cem mil habitantes (ao todo, 150 óbitos), queda de 60% sobre o índice das mesmas áreas em 2007. O nível mais baixo, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), foi em 2013, com 10,9 vítimas por cem mil habitantes (76 mortes ao todo).

No ano passado, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública contabilizou no país 367 mortes de agentes da lei, uma por dia; e 5.144 homicídios decorrentes de intervenções policiais, 14 diários. Este ano, de fevereiro a agosto, nos seis primeiros meses de intervenção federal no Rio, 74 policiais e militares perderam a vida, 27% em serviço; 916 pessoas foram mortas pelas forças de segurança, informou o Observatório da Intervenção. Mais brutalidade produzirá mais luto. O Rio precisa preservar vidas, não ceifá-las.