O globo, n. 31154, 23/11/2018. País, p. 4

 

Entrevista - Adrian Brea Sánchez: ‘Fico para recolher lixo ou varrer rua’ 

Adrian Brea Sánchez

Silvia Amorim

23/11/2018

 

 

Na tarde de ontem, o médico cubano Adrian Brea Sánchez, de 30 anos, recebeu em sua caixa de e-mail a mensagem que tanto temia. O governo cubano marcou para o próximo dia 5 o voo de retorno dele para Cuba. Desde que chegou ao Brasil, em março de 2017, vindo de Santiago de Cuba para trabalhar no programa Mais Médicos, ele vive em Pirapetinga, um município de cerca de 10 mil habitantes em Minas Gerais. Sánchez faz duras críticas à Opas e ao governo cubano. E garantiu que ficará no Brasil nem que tenha que “trabalhar recolhendo lixo ou varrendo rua”. Ele vive aqui com uma médica cubana, também desligada do programa.

Como você foi avisado de que seria desligado do Mais Médicos?

Eu recebi uma ligação da secretária municipal de Saúde daqui (Pirapetinga) dizendo que eu tenho que viajar no dia 5 de dezembro. A comunicação entre nós e a Opas é por meio desses assessores. São cubanos encarregados de monitorar a nossa atividade no Brasil, olhando se estamos trabalhando. Gosto do meu país, mas não volto pelo que está acontecendo com a Opas. A Opas está sendo manipulada por esse pessoal cubano.

Existiam outros médicos cubanos na unidade em que trabalhava?

Não. Eu sou o único médico cubano na cidade. Eu trabalhava sozinho no posto de saúde. É uma cidade pequena e não tem nenhum médico brasileiro. Tinha um, mas ele saiu meses atrás. Não era do Mais Médicos.

Não tem medo de ficar no Brasil e sofrer represálias?

Eles (representantes do governo cubano) já procuraram meus pais em Santiago de Cuba para falar o que está acontecendo no Brasil. Desde que o Bolsonaro foi eleito, começou a briga e a campanha política para que nossos familiares falem com a gente para evitar que fiquemos aqui no Brasil.

Ficou com medo?

Eu vou ser considerado desertor. Estarei proibido de voltar a Cuba por oito anos. O que eles vão fazer? Vão me matar? Quem garante que quando você chegar lá eles não vão te aplicar uma medida disciplinar ou invalidar meu diploma.

Quem você considera o responsável pela situação dos médicos cubanos?

O governo cubano. Nosso presidente Jair Bolsonaro falou que o médico cubano precisa fazer Revalida se quiser trabalhar no Brasil. Cuba sabe disso e fez tudo para tirar os médicos daqui.

Por que vocês querem ficar no Brasil?

Porque é um bom país para trabalhar. Quero continuar trabalhando como médico. Meu contrato era de três anos. O que faço com tudo que eu comprei para mobiliar minha casa? Fiz um empréstimo, estou pagando. Tem médico dormindo no chão, vendendo a cama e a geladeira para ir embora.

Você veio para o Brasil pensando em ficar aqui?

Eu vim para trabalhar três anos. Só que o contrato foi rasgado. Eu recebi R$ 2.976 por mês e não R$ 4 mil como dizem.

Está decidido a ficar?

Sim, fico aqui nem que tenha que trabalhar recolhendo lixo ou varrendo rua. Mas para meu país eu não volto não porque me sinto enganado.

Vai tentar se inscrever no Mais Médicos?

Com certeza. Vou tentar fazer também o Revalida.

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Às pressas, cubanos deixam o Brasil - um e-mail de despedida

Vinicius Sassine

23/11/2018

 

 

Profissionais relatam ter recebido mensagens curtas da entidade que gerencia o programa e se dividem entre críticas a Cuba, a vontade de ficar no Brasil e a tristeza de abandonar uma vida estabelecida; governo decide prorrogar inscrições

A vida da médica Kenia Flores Perez, de 35 anos, ganhou outro ritmo nesta semana —um ritmo indesejado por ela. No fim da tarde de quarta-feira, terminou de empacotar suas coisas. À noite, participou de uma festa de despedida, regada a música sertaneja. Acordou cedo na quinta e recebeu a visita de moradores da pacata Teresina de Goiás, de quatro mil moradores. O policial apareceu, a vizinha, a dona da casa ficou o tempo inteiro ao lado. Num clima quase fúnebre, deu um longo abraço no secretário de Saúde. Às 10h, rumou para Brasília, a 280 quilômetros dali. Foi direto para um hotel, e passou as últimas horas no Brasil esperando o voo que a levará a Cuba hoje.

Kenia faz parte dos milhares de médicos cubanos que precisaram deixar às pressas seus postos de trabalho e suas vidas no Brasil — já consolidadas, para muitos deles — em razão da decisão do governo de Cuba de abandonar o Mais Médicos, depois das ofensivas do presidente eleito, Jair Bolsonaro, contra o modelo do programa. A médica se preparava para tirar férias neste mês. Já são dois anos no Brasil, sempre em Teresina de Goiás, cidade encravada na Chapada dos Veadeiros, na região mais pobre e isolada do território goiano. Um e-mail mudou tudo. As férias viraram um retorno atabalhoado e definitivo.

As decisões sobre o destino dos médicos cubanos foram comunicadas em e-mails curtos, disparados diretamente aos profissionais, sem passar pelos secretários de saúde. Os contatos foram feitos pelos cubanos que estão à frente da área responsável na Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) no Brasil, entidade que gerencia os contratos do Mais Médicos, e pelo próprio governo cubano.

Kenia foi pega de surpresa. Seu contrato venceria somente no fim de 2019. Por email, foi avisada da necessidade de voltar a Cuba. Primeiro, informaram a ela que era preciso estar num hotel em Brasília após as 14 horas de quinta. Depois, a informação repassada foi para ela chegar ao hotel antes do meio-dia. E assim foi feito.

Kenia não disfarçava a frustração em ter de antecipar o encerramento de um contrato previsto para durar até o fim do ano que vem. A médica já estava adaptada ao Brasil, à pequena comunidade onde vivia e trabalhava. Parcelou o pagamento da compra de diversos móveis, que ficaram para trás. Empacotou o que foi possível, seguiu para Brasília sem saber se conseguiria despachar tudo.

A experiência no Brasil é a segunda dela no plano internacional. Antes, trabalhou em Maracaibo, na Venezuela, entre 2008 e 2011. Voltou para Cuba e, desde novembro de 2016, atendia pacientes de uma das regiões mais pobres e isoladas do CentroOeste. Encontrou um Brasil diferente do que ela via nas novelas brasileiras:

—Aqui existe demasiada desigualdade social. Deveria ter o básico em saúde e educação.

A médica, apesar da contrariedade com o retorno apressado, não reclama do modelo para os cubanos no Mais Médicos. Por outro lado, ela critica Bolsonaro. O presidente eleito já lançou dúvidas até mesmo sobre serem médicos de fato:

— Ele nos depreciou, mas éa população que vai sentir os efeitos, principalmente da Amazônia, indígenas, quilombolas. Nós não viemos ao Brasil enganados. Assinamos um contrato.