O globo, n. 31159, 28/11/2018. País, p. 11

 

Adesão ao Mais Médicos esvazia Saúde da Família

Renata Mariz

André de Souza

28/11/2018

 

 

Atraídos por salários do programa federal, profissionais que já atuam na atenção básica estão migrando de posto. Em alguns estados, é o caso de mais da metade dos inscritos para substituir cubanos. Secretários veem ‘transferência do problema’

Atraídos pelo ganho salarial, profissionais estão migrando de programas como o Saúde da Família para o Mais Médicos. Na Bahia, no Rio Grande do Norte ena Paraíba, mais de 50% dos inscritos para substituir os cubanos já atuavam na atenção básica. Municípios se queixam de“transferência do problema ”. Depois de enfrentar a ameaça de apagão na saúde, com a saída de milhares de cubanos do Mais Médicos, prefeitos e secretários municipais de todo o país estão lidando agora com outro problema, de proporções ainda incertas.

A abertura de 8,5 mil vagas no programa, com salários de R$ 11,8 mil, acabou provocando uma onda migratória de médicos que já atuavam na atenção básica, sobretudo nas equipes de Saúde da Família, e agora estão abandonando seus postos para ingressarem no Mais Médicos em condições mais vantajosas em outras cidades. O problema foi detectado pelo GLOBO em três estados.

Na Bahia, 53% dos cerca de 750 médicos selecionados com nomes divulgados entre os gestores trabalhavam na rede de saúde de outros municípios. No Rio Grande do Norte, essa taxa atingiu 70,5% entre os 139 profissionais alocados no estado. A Paraíba detectou que 60% de 128 médicos que se apresentaram para ocupar vagas deixadas por cubanos estão saindo de seus postos nas equipes de Saúde da Família.

Os secretários apontam a migração dos médicos, que pode explicar em parte o suposto sucesso da seleção alardeado pelo governo, que anunciou preenchimento de 97,2% das vagas em apenas seis dias, apenas como uma transferência do problema. Ao mesmo tempo em que preenche os postos do Mais Médicos, o movimento dos profissionais abre novas frentes de desassistência na rede regular de saúde.

A secretária municipal de Saúde de Itabaiana (PB), Soraya Lucena, conta que perdeu três dos dez médicos de Saúde da Família que ela tinha porque eles migraram para o Mais Médicos. Ela afirma que as condições ofertadas pelo programa se mostram mais atrativas do que as do município, que paga R$ 10 mil via contrato, sem previsão de férias e com carga horária de 40 horas semanais:

—Não temos como competir, porque no Mais Médicos eles recebem R$ 11,8 mil, têm férias e parte da carga horária dedicada aos estudos. Descobriram um santo para cobrir outro, como diz o ditado aqui na Paraíba. Minhas equipes vão ficar desfalcadas.

A fuga de profissionais ocorre principalmente das equipes formadas a partir do programa do governo federal Estratégia Saúde da Família. O município recebe recursos do Ministério da Saúde por grupo multidisciplinar formado com médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários. Mas é preciso investir dinheiro próprio para contratar os profissionais. O salário médio dos médicos pagos pelas prefeituras gira em torno de R$ 10 mil, segundo gestores do Nordeste ouvidos.

Questionado sobre o problema ocasionado com a migração dos profissionais, o Ministério da Saúde restringiu-se a dizer que os médicos da Estratégia Saúde da Família só podem atuar em municípios com perfis iguais ou de maior vulnerabilidade do que aqueles onde já trabalham, segundo regras do edital. A pasta não comentou as críticas dos gestores sobre o reflexo na rede regular com a saída dos profissionais.