Correio braziliense, n. 20192, 02/09/2018. Política, p. 4/5

 

Desafio quilométrico

Simone Kafruni

02/09/2018

 

 

ELEIÇÕES 2018 » O setor de transporte precisará de atenção especial não só do próximo presidente. Os obstáculos podem demorar uma década para serem resolvidos

Com deficiências graves em todos os modais de transporte, o Brasil necessita de mais de R$ 1 trilhão de investimentos e milhares de projetos para modernizar a infraestrutura logística. O próximo presidente, no entanto, vai pegar um país mergulhado em uma crise fiscal sem data e hora para acabar. No cenário mais otimista — e menos provável —, o deficit primário das contas públicas só será zerado em 2022, ou seja, no fim do mandato de quem for eleito em outubro.

Mesmo sem dinheiro público, o sucessor de Michel Temer terá que encontrar uma solução para os gargalos de transporte, porque, quanto mais tempo o setor passar com investimentos minguados, maior será a necessidade de recursos para, literalmente, tapar os buracos resultantes de uma manutenção precária por falta de dinheiro. Dados da Confederação Nacional de Transportes (CNT) apontam que, em 2014, o país precisava de 2.045 projetos e R$ 987 bilhões em investimentos, números que saltaram para 2.663 projetos e R$ 1,7 trilhão em 2018.

Os valores necessários para modernizar a infraestrutura de transportes crescem exponencialmente, explica o diretor executivo da CNT, Bruno Batista, porque os investimentos no setor são muito baixos, vêm caindo sistematicamente e, mesmo o que é empenhado, não é efetivamente pago. “O problema se avolumou tanto que os projetos necessários são cada vez maiores e será preciso manter uma política voltada para manutenção do parque atual de infraestrutura por mais de uma década para que não se deixe deteriorar”, diz. “O que é investido mal dá para fazer a manutenção da infraestrutura existente”.

Em 2012 — ano em que foi empenhado o maior valor desde 2006 — R$ 13,6 bilhões foram realmente aplicados dos R$ 28,2 bilhões destinados ao setor de transportes. Desde então, o investimento público cai vertiginosamente (Veja quadro acima) até chegar a um orçamento de R$ 10,3 bilhões para 2018 — R$ 11,3 bilhões se for considerar o valor autorizado para a Infraero e a Companhia Docas. “O problema é que, além de os recursos serem insuficientes para fazer a manutenção da infraestrutura de transporte, não são pagos”, afirma Batista.

Até julho de 2018, do baixo orçamento do setor, o governo autorizou apenas 19,7% para o exercício. Ao se considerar os restos a pagar de anos anteriores, o índice sobe para 49,9%, mas nunca chega à totalidade do orçamento. “Sempre fica um valor tão baixo que não se consegue investir em novos projetos. A cada três ou quatro anos, o que se deixa de pagar é quase um orçamento integral”, assinala o diretor da CNT. Além disso, tributos que deveriam ser exclusivos para investimento em transporte, como a Contribuição de Intervenção sobre Domínio Econômico (Cide), são capturados pelo caixa do governo. Da Cide, apenas 45,7% dos R$ 93 bilhões arrecadados desde 2002 foram aplicados no setor.

Malha rodoviária

Não à toa, o Brasil tem uma malha rodoviária asfaltada muito aquém dos percentuais de outros países com dimensões continentais, como Estados Unidos, China, Rússia e Canadá. De 1,720 milhão de quilômetros, apenas 213,4 mil são pavimentados (12,4% do total), para uma frota de 2,7 milhões de caminhões, 638 mil cavalos mecânicos (conjunto formado pela cabine, motor e rodas de tração do caminhão com eixo simples que pode ser engatado em vários tipos de carretas) e 2,5 milhões de reboques e semi-reboques, ônibus e carros de passeio. Além disso, 61,8% total da extensão das rodovias do país têm problemas, que agregam o custo em 27%, por conta da elevação de consumo, aumento de frequência de manutenção, perda de eficiência nas entregas, aponta a CNT.

A greve dos caminhoneiros descortinou a dependência do modal rodoviário no país, que recebe mais de 70% dos parcos investimentos, conforme descreve Batista. “Os demais setores estão ainda piores. As hidrovias são muito deficitárias. Temos muitos rios navegáveis economicamente, mas a única hidrovia que opera é Tietê/Paraná, que ficou parada porque se priorizou geração de energia no passado”, destaca. Ele lembra de Tucuruí, cuja eclusa demorou 30 anos para ser concluída. “Pronta há cinco ou seis anos, se descobriu um pedral no rio, que faz com que não se possa navegar na hidrovia na época de seca”, conta.

Isso revela a falta de planejamento, na opinião de Bruno Batista. “Os programas do governo não têm conexão. Não têm casamento. O setor de transporte tem que ser entendido como um sistema logístico integrado que abrange todas as modalidades”, defende. O diretor da CNT ressalta que a malha ferroviária também está muito aquém da necessidade do país. “São 30 mil quilômetros de trilhos ainda constituídos na primeira metade do século passado. Agora, estão rediscutindo, mas à época das concessões (1997), só se fez a distribuição da malha existente”, afirma.

Recomendações

Para superar os entraves, há consenso entre os especialistas de todas as áreas de transporte que, com o problema fiscal e a margem de investimento encolhendo, o próximo presidente terá que usar de muita criatividade. “A saída, quase que exclusiva, vai ser por meio de parceria entre governo e setor privado”, estima Batista, da CNT. A vantagem, para ele, é que a infraestrutura movimenta a economia, por meio da construção civil, com geração de emprego. Dos grandes países, o Brasil é o único com alta demanda para projetos. “Há dinheiro no mundo. Os chineses estão olhando para o Brasil, mas é preciso resolver o problema de insegurança jurídica”, afirma Fernando Marcondes, sócio da área de infraestrutura do L.O. Baptista Advogados.

No setor ferroviário, Claudio Frischtak, presidente da Consultoria de Negócios InterB, sugere mudanças regulatórias que permitam a criação de shortlines (linhas curtas ferroviárias), a exemplo do que existe nos Estados Unidos. “Se sair do regime de concessão para autorização, isso vai facilitar as pequenas linhas de tal maneira que estimule o investimento e ofereça alternativas para os usuários”, recomenda.

Outra questão que atrapalha o desenvolvimento do setor é quantidade de órgãos com ingerência em transportes e a indefinição de prioridades. Além do ministério, são várias agências reguladoras — Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) —, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Valec, estatal ferroviária, Infraero, estatal de aeroportos, Empresa de Planejamento Logístico (EPL), Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e Companhia Docas. “São de 10 a 12 instâncias com ingerência sobre o setor. Numa situação de recursos limitados, é preciso ter um comando mais definido e mais claro”, sugere Bruno Batista, diretor da CNT.

Frases

“Há dinheiro no mundo. Os chineses estão olhando para o Brasil, mas é preciso resolver o problema de insegurança jurídica”

Fernando Marcondes, sócio do L.O. Baptista Advogados

 

“Os programas do governo não têm conexão. Não têm casamento. O setor de transporte tem que ser entendido como um sistema logístico integrado que abrange todas as modalidades”

Bruno Batista, diretor executivo da CNT

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Problemas por terra, ar e água

Simone Kafruni

02/09/2018

 

 

Para Cesar Borges, presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Rodovias (ABCR), o investimento em infraestrutura rodoviária caiu drasticamente. “Hoje é de 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto). E a tendência é reduzir ainda mais em 2019 por conta da crise fiscal. Não há como o poder público investir nas obras necessárias, mas o setor privado tem limite. Faz onde há demanda e capacidade de pagamento pela população”, ressalta.

Nessa linha, há pelo menos 10 rodovias que podem ser licitadas no ano que vem, que são atrativas, garante Borges. “Umas mais, outras menos, depende da modelagem. Mas são 10 de curto prazo que o setor privado tem interesse, entre federais e estaduais”, revela. Ex-ministro dos Transportes, Borges destaca que a manutenção de uma estrada federal custa muito caro. “Algumas rodovias precisam ser duplicadas. Outras precisam de terceira faixa. O governo não consegue fazer. Mal consegue manter, por isso, nossas estradas estão cada dia piores”, lamenta. A saída, diz ele, é por meio de concessões, mas falta a segurança administrativa, que vem “antes da jurídica”. A resolução de problemas no setor esbarra na agência reguladora, que tem receio de tomar decisões, e ser responsabilizada pelos órgãos de controle. “Vivemos um apagão das canetas”, comenta.

No setor ferroviário, a prioridade é a defesa da política implementada pelo governo Temer. Para Fernando Paes, diretor da Associação Nacional dos Transportes Ferroviários (ANTF), o recado ao futuro presidente é continuar com a prorrogação das concessões. “Isso está na agenda desde 2015, e nossa principal demanda é para que, se os processos não estiverem concluído este ano, haja continuidade no próximo governo”, afirma. A prorrogação de duas ferrovias da Vale estão em audiência pública e a da Malha Paulista da Rumo já foi encaminhada ao Tribunal de Contas da União (TCU), mas outras duas devem ficar para 2019. Assim, mais R$ 6 bilhões serão injetados para recuperar ramais, duplicar trechos, investir em trilhos mais robustos. “O resultado disso é que vai mais do que dobrar a capacidade de transporte, hoje de 30 milhões de toneladas úteis/ ano para 75 milhões de toneladas/ano”, ressalta Paes.

Nos outros casos, o governo exige um investimento cruzado para que as concessionárias atuais façam a infraestrutura de trechos e os devolvam para o governo licitar. A ANTF sustenta que o próprio setor privado faça as obras cruzadas, porque tem mais agilidade, com custo mais baixo, auditado pelo TCU.

Turbulência

O setor aéreo tem bem claras as diretrizes que persegue: cadeia eficaz, liberdade tarifária e ambiente regulatório em condições de igualdade com o mundial. Para isso, representantes do setor vão apresentar aos presidenciáveis suas demandas, que passam pela atuação na precificação e tributação do querosene de aviação (QAV), investimento em infraestrutura aeroportuária, em terra e no ar, com a modernização dos instrumentos de controle, e autonomia das agências reguladoras.

“O setor aéreo não gosta de turbulência nem em terra, nem no ar. Quanto mais estabilidade no cenário de custos e no regulatório, melhor”, defende Eduardo Sanovicz, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear). Ele explica que o setor luta pela liberdade tarifária, pela regulação em conformidade com as normas internacionais e pela redução do teto de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o querosene de aviação. “Essas questões são fundamentais para seguir num processo de crescimento. Fomos de 30 milhões para 100 milhões de passageiros de 2002 a 2015. A aviação virou meio de transporte de massa, com a queda de R$ 700 para R$ 350 na tarifa média”, diz. “Há muita participação estatal. Temos a Infraero, Anac, Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Polícia Federal, Receita Federal, estrutura militar de controle do espaço aéreo. E, agora, também envolve a iniciativa privada a partir da concessão de aeroportos”, elenca.

Já o transporte aquaviário no Brasil se concentra nos mares e nas atuações dos portos e terminais privados, uma vez que as hidrovias são deficitárias. No entanto, os interesses do setor são defendidos por duas associações distintas. A Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados (Abtra) atua há 28 anos e representa 55 das principais empresas portuárias. A Associação de Terminais Portuários Privados (ATP) é mais recente, fundada em 2013, e defende os interesses de um conglomerado responsável por 60% da movimentação de cargas de todo o comércio brasileiro.

A Abtra lamenta a falta de investimentos no setor. “No período de 1995 a 2017, o governo havia previsto um aporte de verbas de R$ 22,6 bilhões para investimentos em obras nos 18 portos públicos administrados pela Companhia Docas. Os repasses efetivos no período ficaram limitados a R$ 8,3 bilhões, apenas 36,7%. Ou seja, R$ 14 bilhões foram para o ralo”, conta Bayard Freitas Umbuzeiro Filho, presidente da entidade. A ATP defende o desenvolvimento de hidrovias para o transporte de cargas. “Temos muitos rios navegáveis, o Madeira, o São Francisco, o Taquari, o Parnaíba, com uma eclusa inacabada. Mas nada evolui. Se ganharia economicamente, porque o custo hidroviário é mais baixo; ambientalmente, com emissão muito menor; e, socialmente, com menor risco de acidentes”, elenca o presidente da ATP, Murillo Corrêa Barbosa.

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Reclamações de profissionais e usuários

Bruno Santa Rita

02/09/2018

 

 

O caminhoneiro Ozéias Rodrigues de Souza, 53 anos, trabalha nas estradas do Brasil há 23 anos. A principal reclamação do motorista é o preço do diesel. Segundo ele, mesmo após a greve dos caminhoneiros, em maio, a situação continua difícil. “O diesel permanece sendo problema para a gente”, afirma. Outra reclamação diz respeito aos pedágios. “Eles (os pedágios) são muito caros. Passamos por vários deles nas viagens”, lembra.

A infraestrutura também é um obstáculo levantado pelo motorista. Ele explica que um dos trajetos que costuma fazer passa pela BR-163, famosa pelo alto índice de acidentes. “São trechos ruins, muito perigosos”, exemplifica. Fora as situações complicadas do dia a dia. “Uma vez, um ônibus fez uma ultrapassagem errada e levou meu retrovisor. Quase bateu no outro caminhão que vinha na outra pista”, comenta.

As situações de perigo são repetidas por outros companheiros de profissão. Meirielen Oliveira, 31, é carreteira há sete. Ela conta que já sentiu medo ao fazer alguns percursos, inclusive a BR-163. “Quando saio de Cuiabá, rezo para pegar um comboio para ir junto”, ressalta. Ela lembra que sempre há acidentes na estrada e que, às vezes, isso dificulta completar o trajeto dentro dos prazos estipulados. “Já esperei dias na estrada para terminarem de guinchar um caminhão acidentado”, frisa.