O globo, n. 31046, 07/08/2018. Sociedade, p. 21

 

ABORTO AGUARDA JULGAMENTO

André de Souza

Eduardo Bresciani

07/08/2018

 

 

ÚLTIMO DIA DE DEBATES NO STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu ontem a audiência pública, iniciada na sexta-feira, sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A parte da manhã foi dedicada à exposição de grupos religiosos — em sua maioria, contrários à liberação. À tarde, participaram profissionais do Direito, que trataram dos aspectos legais em torno do tema.

Após os debates, convocados para auxiliar os ministros no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo Psol e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, o tema será submetido a votação no STF, ainda sem data definida. Abaixo, alguns dos principais argumentos de ontem.

‘Inconstitucional’

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) abriu o bloco de exposições com o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, que classificou como inconstitucional e desbalanceada a audiência.

— (A Corte) Está fingindo ouvir as partes, mas o que está fazendo é legitimar o que virá em seguida. A prova disso é que os que defendem o reconhecimento do aborto como direito tiveram mais do que o dobro do tempo do que os que tiveram a posição contrária. Isso não respeita o princípio do contraditório que está expresso na Constituição. Esta audiência é parcial. A maneira como está sendo conduzida viola a Constituição.

Outro ponto questionado por representantes de grupos religiosos foi a competência do Judiciário para tratar do tema. O bispo Ricardo Hoepers, também da CNBB, defendeu que a questão do aborto seja tratada no Parlamento.

A relatora do processo, ministra Rosa Weber, defendeu o papel do Supremo. Ela destacou que o caso chegou à Corte por meio de uma ADPF, cabendo ao órgão analisar o mérito.

‘Cultura da morte’

Douglas Roberto de Almeida Baptista, da Convenção Geral das Assembleias de Deus, disse que os defensores do aborto representam a “cultura da morte”.

— A Convenção Interamericana de Direitos Humanos assevera que toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente — afirmou, acrescentando que o aborto é contra os Dez Mandamentos. —Viola o decálogo bíblico, que diz: não cometerás assassinato.

Bíblia não proíbe

Por sua vez, a representante do Instituto de Estudos da Religião, a pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, defendeu que não há nada na Bíblia que proíba o aborto. Citou duas passagens do Velho Testamento que fazem referência à questão. Uma delas diz que, no caso de uma mulher que seja ferida e venha a abortar, o agressor deve pagar uma indenização ao marido. Se o feto fosse considerado já um ser vivo, a punição teria sido a morte. A outra passagem diz que, se o marido ficasse com ciúme da sua esposa, poderia praticar o ritual de ordália. Ela viria a tomar “águas amargas” e, se houvesse aborto, estava provado que ela tinha sido infiel, e o marido até poderia matá-la por apedrejamento. O problema nesse caso, diz Lusmarina, era a infidelidade, e não o aborto.

—A conclusão a que se chega é que o aborto não é considerado crime pela Bíblia.

Violação do direito à saúde

A defensora pública federal Charlene da Silva Borges, em nome da Defensoria Pública da União, foi favorável à descriminalização. Segundo ela, a proibição constitui uma violação do direito à saúde da mulher. Ela afirmou que a criminalização têm caráter androcêntrico, ou seja, o Direito Penal foi feito na sua maior parte por homens, sem pensar nas mulheres. E disse que a proibição não inibe a tomada de decisão de realizar o aborto. Ou seja, mesmo com a criminalização, as mulheres continuarão interrompendo a gravidez.

Mais responsabilizadas

Ana Rita de Souza Prata, da Defensoria Pública do Estado de SP, destacou uma pesquisa feita pelo órgão em 30 processos contra mulheres que realizaram aborto. Ela ressaltou que somente cinco vezes os homens que se relacionaram com essas mulheres também foram processados, “apesar de citados em 21 processos, sendo diretamente relacionados ao fornecimento dos métodos utilizados em nove casos”.

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'NÃO HÁ COMO O STF IGNORAR O QUE FOI APRESENTADO'

Debora Diniz

Ana Paula Blower

07/08/2018

 

 

Debora Diniz, PESQUISADORA

Professora de Direito da Universidade de Brasília, Debora Diniz está há ao menos 15 anos à frente de ações no Supremo Tribunal Federal que envolvem temas relacionados ao aborto. Em 2017, o Psol e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), fundado por Debora, protocolaram a ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana.

Depois disso, a pesquisadora passou a receber ameaças e, como medida de segurança, deixou Brasília — para onde voltou apenas para participar dos debates.

O que achou das audiências?

As audiências foram um momento de giro do debate público sobre aborto no Brasil. No primeiro dia, as mais importantes comunidades científicas foram consensuais: a criminalização não é política de saúde, mas de desamparo. Os dados científicos confiáveis foram explicados e apresentam o que já se sabia: só a descriminalização diminui o número de abortos, cuida das mulheres e protege a família. Os argumentos em defesa da prisão dessas mulheres foram de ordem moral, semelhantes aos das comunidades da fé desta segunda-feira. Não há como o Supremo ignorar o que foi apresentado à exaustão nesses dois dias.

As redes sociais têm grande papel na troca de informações sobre o aborto. Como vê isso?

O Brasil é um dos poucos países onde difundir informação sobre como uma mulher pode fazer para evitar morrer é crime. Então elas criam mecanismos clandestinos para ajudar umas às outras. Esses espaços sempre existiram. Hoje estão na internet. Mas só participa quem tem acesso à internet. Não podemos pressupor que isso é universal no Brasil. Há um recorte de região e de classe. Não é à toa que as mulheres que morrem são negras, pobres e com filhos.

Muitos profissionais de saúde avisam à polícia quando recebem uma paciente que induziu o aborto.

Ela não pode ser denunciada por um profissional de saúde. É contra a lei. Mas muitos médicos estão tão confusos por contado estigma do aborto que acham que têm que denunciar. E aí o que acontece é que essas mulheres, as mais vulneráveis, evitam procurar um serviço de saúde. As da elite podem pegar um avião e ir para a Colômbia, por exemplo, ou sabem onde comprar um medicamentos em correr risco.

Como avalia a maneira com que a sociedade debate o assunto atualmente?

Cada vez que temos uma crise política da magnitude da que o Brasil enfrenta, temas com forte apelo moral, como a união civil de pessoas do mesmo sexo ou o aborto, ganham força de comoção. Então, eles se transformam em veículo fácil para juntar multidões, inclusive com discurso de ódio.