Boas intenções, efeitos adversos

Pedro Fernando Nery

24/06/2017

 

 

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É comum o argumento de que a legislação e a Justiça do Trabalho são exageradamente pró-trabalhador. A afirmação é falaciosa: sempre se deve querer o bem do trabalhador. A questão é que, na verdade, essa estrutura normativa o prejudica com frequência, especialmente quando peca por idealizar o comportamento dos patrões. A Justiça do Trabalho é uma Justiça de decisões bem-intencionadas e efeitos adversos.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê, por exemplo, que o empregador pode oferecer transporte aos empregados, sem que isso conte como tempo da jornada. O transporte dado livra o empregado de passar mais tempo em deslocamento e de usar o precário sistema de transporte público. Há duas exceções: o transporte será computado como tempo de jornada se o local de trabalho for de difícil acesso ou não servido por transporte público regular. Muitos juízes reinterpretam esses dois termos. A intenção pode ser boa, uma vez que o empregado ganha uma indenização. O resultado não é: diante da insegurança jurídica, as empresas ficam na defensiva e deixam de oferecer transporte. Quem perde?

Outro bom exemplo é o engessamento de políticas de remuneração. Quando um juiz decide pela incorporação definitiva de um adicional eventual de produtividade, o empregador tende a resistir a conferir esse tipo de prêmio.

Representativa dessa miopia é a Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Ela previa que condições benéficas concedidas temporariamente aos trabalhadores em negociações coletivas deveriam ser incorporadas definitivamente ao contrato individual. Quantos empregadores estarão predispostos a negociar essas concessões temporárias?

A teoria microeconômica não é romântica ao descrever o comportamento de uma firma: seu objetivo é maximizar seu lucro. Assim, a escolha racional de empregadores diante de decisões trabalhistas como essas será prejudicial justamente para os empregados. O Judiciário trabalhista tem sido pródigo em, ao julgar ações, decidir de maneira que nos casos concretos parece favorável os trabalhadores, mas acaba sendo deletéria para eles. Esse resultado decorre, ironicamente, de idealizar o comportamento (natural) das empresas.

Individualmente, os julgamentos podem fazer sentido. No agregado, não. Mesmo o TST, que poderia ter uma melhor visão do todo, não tem os insumos do Parlamento para legislar. E também falha ao não antecipar a reação empresarial. A regulação do trabalho no Brasil precisa trabalhar com esta restrição: buscar o melhor para o trabalhador ciente de que o DNA da empresa é visar o lucro.

Um segundo problema que existe no arcabouço que rege o trabalho no Brasil é o seu confinamento na lógica de mais-valia e na oposição entre capital e trabalho. Outra oposição, talvez mais relevante, é aquela tácita entre incluídos e excluídos. Cerca de metade de força de trabalho está incluída na legislação trabalhista, e metade está excluída, desempregada ou informal. O instinto protetor sobre o primeiro grupo pode prejudicar o segundo.

Pelo dilema insider-outsider, o ganho do incluído pode significar perda para o excluído, e vice versa. Um exemplo presente na reforma trabalhista é a inovação do trabalho intermitente, uma controversa nova forma de contratação, por hora. Um bar poderia ampliar o número de garçons contratados no fim de semana, permitindo a inclusão de excluídos: desempregados para quem trabalhar algumas horas por mês é um avanço ante não trabalhar hora nenhuma.

Por outro lado, a mudança permitiria ao bar ter menos empregados no seu quadro fixo, pela menor demanda nos outros dias. Isso seria perda para incluídos contratados por toda a semana, que passariam a trabalhar apenas no fim de semana. Esse dilema ainda aparece pouco no debate sobre a legislação e a Justiça trabalhistas, em que predomina a visão do conflito capital-trabalho, sem que se perceba que existe um terceiro grupo afetado por essas normas e decisões e sem que se note o conflito invisível entre incluídos e excluídos.

Um terceiro raciocínio que precisa ser aprimorado nesta discussão é o que defende não precisarmos de mudanças na CLT ou no Judiciário, uma vez que não houve mudanças nos últimos anos, nem quando o desemprego caiu, nem quando o desemprego subiu. O argumento, expresso nas redes pela atriz Camila Pitanga, tem lógica: uma mudança na legislação não é uma varinha de condão que resolva sozinha os problemas de renda do País. Entretanto, mesmo quando esteve bom, o funcionamento do mercado de trabalho era muito ruim.

Até no período de boom, com desemprego em baixa, convivemos com informalidade alta e produtividade estagnada, negativa em alguns setores. As estatísticas também escondiam o desemprego oculto pelo desalento, o que se refere ao “desempregado raiz”: o desempregado que já desistiu de procurar ocupação e não aparece mais nos dados oficiais. A baixa taxa oficial também não revelava a “desigualdade de desemprego”: os indicadores muito piores para mulheres, negros e jovens, grupos normalmente esquecidos nessa discussão.

Cabe ao juiz do Trabalho ativista entender melhor que os indicadores do mercado de trabalho – que não se resumem à taxa de desemprego – são sensíveis às suas decisões, que a soma de decisões individuais bem-intencionadas pode provocar a exclusão de largas parcelas da população e que o empresário tende a reagir racional e defensivamente ao seu ativismo, transferindo riscos para o trabalhador (até mesmo para o excluído, quando foge da contratação formal). Sem essa visão mais ampla a Justiça do Trabalho corre o risco de continuar sendo vista como um elefante em loja de cristais.

 

* PEDRO FERNANDO NERY É CONSULTOR LEGISLATIVO DO SENADO PARA ECONOMIA DO TRABALHO E PROFESSOR DO INSTITUTO BRASILIENSE DE DIREITO PÚBLICO

 

 

O Estado de São Paulo, n. 45175, 24/06/2017. Espaço Aberto, p. A2.