Conceito de corrupção pode mudar no Supremo

Maíra Magro

07/01/2017

 

 

Ao julgar os processos da Operação Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltará a definir os conceitos de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro, estipulando parâmetros que se aplicarão em todo o país daí em diante. Uma das principais questões que entrarão em pauta é se a doação oficial a campanhas políticas, em troca de alguma vantagem, pode ou não ser considerada lavagem de dinheiro, além de corrupção.

Os partidos políticos alegarão que a doação registrada não pode sequer ser chamada de corrupção. Já o Ministério Público considera que as doações legais, se feitas em troca de alguma vantagem indevida, envolvem não só corrupção, mas também lavagem de dinheiro. "É sem dúvida uma forma de lavagem, porque o político pede à empresa para pagar propina e recebe o dinheiro de forma aparentemente legal", diz José Robalinho Cavalcanti, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Ele compara o ato ao recebimento de recursos em uma conta no exterior. "Ambos têm a intenção de ocultar o recebimento da vantagem indevida."

Já o advogado Pierpaolo Cruz Bottini, que defende executivos e políticos na Lava-Jato, sustenta que a doação oficial em troca de vantagem indevida pode ser uma forma de corrupção, mas não de lavagem de dinheiro. "Se a vantagem indevida que se pede é a doação oficial, não há ocultação e dissimulação, pois a própria doação é a vantagem", afirma. A diferença pode ser sutil, mas a classificação da conduta como um ou mais crimes tem resultado direto na pena aplicada.

Para o criminalista Pedro Ivo Velloso, o STF deverá se debruçar na Lava-Jato sobre os limites que diferenciam a corrupção e a lavagem. Ele lembra que, no julgamento do mensalão, a corte chegou a mudar de posição sobre esse ponto ao julgar os embargos infringentes, recursos usados para questionar decisões que geraram divergência entre os ministros. "Nos embargos infringentes, o Supremo voltou atrás e entendeu que a conduta de receber uma vantagem indevida, ainda que de forma oculta, não é lavagem, mas apenas corrupção. Afinal, ninguém recebe dinheiro dando recibo", diz Velloso. De acordo com ele, nos procedimentos da Lava-Jato, o Ministério Público não faz essa diferenciação, considerando uma mesma conduta tanto corrupção como lavagem de dinheiro. Portanto, a questão voltará ao STF.

Outra discussão importante envolverá os critérios necessários para identificar a ocorrência da corrupção. Dois processos são considerados marcos para a definição desse crime na suprema corte: os casos Collor e mensalão.

Em 1994, o Supremo absolveu o ex-presidente e atual senador Fernando Collor da acusação de corrupção passiva. Embora houvesse provas de que Collor recebeu de empresas do ex-tesoureiro Paulo César Farias ou empresários ligados a ele um Fiat Elba e pagamentos de despesas da Casa da Dinda, os ministros entenderam que isso não era suficiente para classificar o crime de corrupção. O motivo é que, segundo a decisão da época, não ficou provado que o ex-presidente teria oferecido ou praticado algo especificamente em troca disso - o chamado "ato de ofício".

Para o procurador José Robalinho Cavalcanti, foi uma "mudança para pior" em relação ao que diz o artigo 317 do Código Penal, que classifica da seguinte forma a corrupção passiva: "Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem." O procurador afirma que, no caso Collor, o STF "adicionou" ao artigo legal a exigência do ato de ofício para provar a corrupção passiva. O crime de corrupção ativa, por outro lado, traz a exigência do ato de ofício na própria definição do artigo 333 do Código Penal: "Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício."

Quase duas décadas depois do caso Collor, ao julgar o mensalão, o Supremo flexibilizou o conceito do ato de ofício. Parlamentares que receberam dinheiro desviado foram condenados mesmo sem provas contundentes de que o pagamento era para que votassem a favor do governo em discussões específicas.

Para o criminalista Alberto Zacharias Toron, que atuou em ambos os casos, a Lava-Jato aborda a corrupção de forma ainda mais ampla que no mensalão. Para Toron, empresas podem doar dinheiro a políticos como "um gesto de reconhecimento", o que, em sua opinião, não caracteriza o crime de corrupção. "Algumas empresas deram dinheiro para construir o Instituto Lula, assim como deram para construir o Instituto FHC. No caso do Lula, se diz que isso foi em troca de alguma vantagem. Mas se trabalha com um conceito muito ampliado do que seria essa vantagem. Pode ser simplesmente um gesto de reconhecimento, o que a meu ver não é uma hipótese de corrupção", afirma.

O criminalista Ticiano Figueiredo considera que a operação Lava-Jato está "esvaziando o conceito de corrupção". De acordo com ele, as decisões do juiz Sérgio Moro, em Curitiba, classificam esse crime como "o recebimento de qualquer valor, independentemente de lícito ou ilícito, bastando para isso a pessoa ocupar uma função pública".

É em meio a esse debate que circulam no Congresso tentativas classificar o recebimento de valores em razão da função pública como caixa dois, e não corrupção - crime considerado muito mais grave.

O criminalista Antenor Madruga, que defende executivos da Odebrecht e outras empresas na Lava-Jato, pontua que a operação inovou pelo uso amplo das delações premiadas. Agora, o STF terá que se posicionar sobre o peso que esses documentos terão no processo. "A lei já diz que, sozinha, a colaboração não pode ser considerada prova. Será preciso saber que informações e providências adicionais serão necessárias para validar essas colaborações", afirma.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4169, 07/01/2017. Política, p. A5.