Abuso de autoridade no embalo do foro

Paulo de Tarso Lyra e Julia Chaib

23/03/2017

 

 

CONGRESSO » Senadores aproveitam a PEC que tira do Supremo os processos contra políticos para acelerar a tramitação da proposta que pune possíveis excessos cometidos por integrantes do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário

 

 

Um dia depois de sinalizar a disposição de votar a emenda constitucional que extingue o foro privilegiado, os senadores, amparados nas críticas à Operação Carne Fraca, aceleraram o projeto de abuso de autoridade e querem votá-lo na Comissão de Constituição e Justiça no início de abril. Defendida especialmente pelo líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a proposta é vista com preocupação pelo Ministério Público e pelos delegados federais que temem o futuro de operações de investigação de casos de corrupção.

Para o senador Edison Lobão (PMDB-MA), presidente da CCJ, não há qualquer prejuízo se as duas iniciativas caminharem juntas. Mas ele deixa claro que o abuso de autoridade tem prioridade por estar em regime de urgência. “Vou conceder vistas coletiva para os senadores, com duração de uma semana, para que todos tenham acesso ao texto”, completou o presidente da CCJ.

“A questão do foro foi estigmatizada, mas não são apenas os parlamentares que têm o foro”, disse o peemedebista. O senador maranhense lembrou que o presidente da República, o advogado-geral da União e o procurador-geral da República têm foro no Supremo Tribunal Federal e os governadores têm a prerrogativa de serem julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). “E qualquer cidadão também terá direito a isso. Ele é julgado em primeira instância, mas, com os sucessivos recursos, pode levar seu caso até o Supremo”, comparou ele.

Lobão negou que a medida seja uma forma de blindar os investigados na Lava-Jato ou que tenha alguma ligação com a Operação Carne Fraca. “O projeto é anterior à Lava-Jato e à Carne Fraca. Ele pretende coibir excessos dos agentes públicos”, completou Lobão.

No Congresso da Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), em Florianópolis, o clima era de preocupação com a possibilidade de votação do projeto sobre abuso de autoridade. A avaliação geral é de que ele engessa as possibilidades de ações nas investigações e acua os agentes na atuação de operações sensíveis. A análise é de que a proposta sujeita certas ações, como pedidos de prisão, a interpretações muito subjetivas que podem ser encaradas como abuso de autoridade.

Em nota oficial, a ADPF afirma que a aprovação do projeto pode causar “embaraços ao pleno funcionamento das instituições de combate ao crime organizado e à corrupção”. “O projeto, que prevê atualização dos crimes de abuso de autoridade, é polêmico e precisa ser mais debatido, com calma e tranquilidade, buscando o bem do país, e não no calor dos acontecimentos, o que pode resultar em prejuízo enorme para a sociedade”, diz a nota.

 

Guerra particular

O Correio apurou que a polêmica em torno da Operação Carne Fraca fortaleceu os argumentos de senadores que defendiam o projeto de abuso, apresentado pelo líder do PMDB, Renan Calheiros (AL). Eles acreditam que, antes de defender punições aos investigadores, parecia uma guerra particular de quem estava nos holofotes da Lava-Jato. Agora, não.

A argumentação do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, de que as falhas na Operação Carne Fraca vão causar prejuízos de R$ 1,5 bilhão por ano por até uma década, reforça o poder de convencimento dos peemedebistas. “Nós mostramos que empresários sérios estão sendo prejudicados por ações inconsequentes de alguns agentes públicos”, acrescentou um aliado de Renan.

“Sem dúvida, a Carne Fraca permitiu que o projeto do abuso de autoridade se mexesse no Senado”, reconheceu o presidente nacional do DEM, senador José Agripino (RN). “Alguns estão querendo usar de má-fé nesse debate. Não dá para comparar uma operação com a outra. De mais a mais, já existem muitos instrumentos jurídicos para punir o abuso de autoridade”, criticou o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ). “Se essa proposta passar no Senado, não passa aqui na Câmara”, garantiu Miro.

Delegados da PF avaliaram que a Operação Carne Fraca era necessária e não duvidam da motivação da investigação, por se tratar do combate a atos de corrupção. A interpretação é de que houve erro na maneira como a operação foi divulgada, gerando repercussões equivocadas e a ideia de que o problema com a carne é sistêmico, e não pontual.

 

Um lá, outro cá

Senado acelera projeto de abuso de autoridade para compensar análise do fim do foro

 

Abuso de Autoridade

» Projeto define os crimes cometidos por agente público, em sentido amplo, abarcando servidores públicos e pessoas a eles equiparadas, além de integrantes do Ministério Público e dos Poderes Judiciário e Legislativo de todas as esferas da Administração Pública: federal, estadual, distrital e municipal.

 

Alguns crimes e penas

» Decretar prisão preventiva, busca e apreensão de menor ou outra medida de privação da liberdade, em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa.

 

» Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo.

Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa.

 

» Executar a captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito ou sem ordem escrita de autoridade judiciária

Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa.

 

» Prolongar a execução de pena privativa de liberdade, de prisão temporária, de prisão preventiva, de medida de segurança ou de internação, deixando, sem motivo justo e excepcionalíssimo.

Pena: detenção de 6 meses a 2 anos e multa.

 

» Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro.

Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.

 

» Executar mandado de busca e apreensão em imóvel alheio ou suas dependências, mobilizando veículos, pessoal ou armamento de forma ostensiva e desproporcional para expor o investigado a situação de vexame;

Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa.

 

» Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada, ou ferindo honra ou a imagem do investigado ou acusado:

Pena: detenção de 1 a 4 anos e multa.

 

» Estender a investigação sem justificativa, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado.

Pena: detenção de 6 meses a 2 anos e multa.

 

» Negar ao defensor, sem justa causa, acesso aos autos de investigação preliminar. Incorre nas mesmas penas quem decreta, à revelia da lei ou sem motivação expressa, sigilo nos autos.

Pena: detenção de 6 meses a 2 anos e multa.

 

» Requerer vista de processo em apreciação por órgão colegiado, com o intuito de procrastinar seu andamento ou retardar o julgamento:

Pena: detenção de 6 meses a 2 anos e multa.

 

Foro privilegiado

» A proposta prevê que, em casos de crime comum, qualquer autoridade passará a ser processada, automaticamente, pelo juiz de primeira instância. A única exceção será o chefe do Executivo Federal, que deverá ter o encaminhamento do processo aprovado preliminarmente pela Câmara dos Deputados.

» O texto extingue o foro de: presidentes da República; governadores; prefeitos; senadores; deputados federais; estaduais/distritais; vereadores; ministros; juízes; promotores; procuradores; conselheiros dos Tribunais de Contas, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

 

Frase

“Alguns estão querendo usar de má-fé nesse debate. Não dá para comparar uma operação com a outra. De mais a mais, já existem muitos instrumentos jurídicos para punir o abuso de autoridade”

Miro Teixeira (Rede-RJ), deputado federal

 

 

Correio braziliense, n. 19658, 23/03/2017. Política, p. 2.