O globo, n. 30474, 12/01/2017. País, p. 4

Acidente vira matança

Michel Temer muda de tom, chama cadeias de desumanas e se diz surpreso com códigos próprios de facções que ‘constituem-se quase uma regra de direito fora do Estado’

Por: EDUARDO BARRETTO E CATARINA ALENCASTRO

 

EDUARDO BARRETTO E CATARINA ALENCASTRO opais@oglobo.com.br -BRASÍLIA-

 

Mais de uma semana depois da deflagração da crise no sistema penitenciário, com 60 presos mortos no Amazonas, o presidente Michel Temer admitiu que as condições nas cadeias são “desumanas”, que houve “pavorosa matança” e que a segurança nacional está em risco. Até ontem, Temer qualificava o massacre como “acidente”, e eximia os agentes públicos de responsabilidades. Desta vez, disse que a União deve enfrentar diretamente o tema pois todo o país está preocupado, mas aproveitou para alfinetar a ex-presidente Dilma Rousseff, que o acompanhou na Presidência por cinco anos.

— São condições desumanas em que os presos se acham. Há presídios em que acidente no dicionário. Apenas cabem 600 pessoas com 1.600 neste ano, 99 presos foram pessoas, não é? — declarou, assassinados. em abertura de reunião ministerial Ao mesmo tempo em que sobre retomada de obras mudou de tom, reconhecendo do Programa de Aceleração do a gravidade da crise nas Crescimento (PAC) no Palácio prisões brasileiras e sugerindo do Planalto. que o governo aumente a atuação

A fala serviu como discurso, já nas carceragens, o presidente que foi transmitida ao vivo pela se defendeu, dividindo a TV estatal NBR. Ele declarou responsabilidade com a antecessora que a Segurança pública é “angustiante”, no Planalto. O peemedebista e se disse surpreso citou que, nos últimos com a organização de facções dois anos, quando era vicepresidente criminosas nas carceragens: de Dilma, o

— Essas organizações criminosas, governo aplicou menos o PCC, a Família do Norte, dinheiro no Fundo entre outras, constituem-se Penitenciário Nacional quase numa regra jurídica, uma (Funpen). Na semana regra de direito fora do Estado. passada, ele havia Vejam que eles têm até preceitos dito que não havia próprios e, para surpresa responsabilidade nossa, até quando fazem aquela “muito clara” de agentes pavorosa matança, o fazem baseado estatais nos homicídios, em códigos próprios — já que o Complexo completou o presidente, que na Penitenciário semana passada havia qualificado Anísio Jobim, em Manaus, o massacre que deixou 60 era terceirizado. detentos mortos em Manaus de — Esses dados são “acidente pavoroso”, após quatro importantes para revelar a distância dias de silêncio completo entre o que se aplicava sobre a chacina. no passado e o que se aplica Após ter sido criticado hoje — criticou. pelo uso do termo “acidente”, Em 2014, a dotação orçamentária Temer publicou foi de R$ 493,9 milhões, no Twitter outras palavras e foram efetivamente que, segundo ele, gastos R$ 51,2 milhões no Funpen. seriam sinônimos, reafirmando No ano seguinte, a dotação a posição e foi de R$ 542,3 milhões, e atraindo mais reprovações. as despesas pagas somaram R$ Porém, os termos 45,8 milhões. No ano de 2016 citados na ocasião — a partir de maio, com Temer não significam na Presidência, interinamente — a dotação atualizada foi de

R$ 2,6 bilhões, e a despesa liquidada foi de R$ 1,1 bilhão.

 

Na última semana, o governo tentou reagir ao massacre de 99 detentos. Um dia após mais de 30 assassinatos de presos, desta vez em Roraima, Temer não repetiu o silêncio de quatro dias, e o Planalto divulgou nota para lamentar as mortes. O Plano Nacional de Segurança foi divulgado antecipadamente, sem detalhes, e o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, negou que o governo federal soubesse que o estado havia pedido socorro federal para as prisões. Contudo, documentos desmentiram o ministro. Há um mês, a governadora de Roraima havia demandado ajuda especificamente para as penitenciárias, alegando “grande clima de tensão” e “urgência”. No mesmo ofício, o secretário de Segurança estadual também narrou decapitações, carbonizações, derrubada de muros, fugas e descontrole do governo na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, a mesma do massacre. O relato deixava claro que o conflito entre PCC e o Comando Vermelho (CV) trazia “graves ameaças à vida”. Moraes havia negado socorrer o estado.