Título: Veredicto: culpado
Autor: D'Angelo, Ana
Fonte: Correio Braziliense, 06/11/2011, Economia, p. 12

Responsabilidade recai sobre trabalhador

Família não se conforma com a decisão da Justiça, que, na maioria dos casos, aceita análises superficiais

Durante quase 20 anos, de segunda a sábado, José Arnaldo Vargas, 49 anos, trabalhou como instalador de acessórios numa concessionária de veículos em Brasília. Nunca sofrera qualquer acidente. Chegou a integrar a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) da empresa por dois anos. Em 9 de fevereiro de 2007, ele foi enterrado com o veredicto de culpado. José Arnaldo morreu ao ser atingido pelo veículo que consertava junto com um colega, ao despencar do elevador eletromecânico que o sustentava no alto.

Os peritos da Polícia Civil concluíram que o equipamento funcionava regularmente e que a culpa foi de Vargas, que não verificou, "no início do içamento", se o veículo estava bem posicionado no elevador. Não foi considerada, na perícia, a técnica do trabalho, que implica forçar o veículo para baixo ao colocar as peças, o que Vargas e o outro funcionário fizeram naquele dia. A Justiça do Trabalho acolheu a defesa da concessionária Disbrave com base no laudo da Polícia Civil, atribuindo "culpa exclusiva" à vítima, e negou a indenização por danos morais pedida pela família.

A busca da culpa do funcionário pelas tragédias ainda é a prática na análise dos acidentes, e é aceita pela Justiça, mas está ultrapassada do ponto de vista do conhecimento científico, diz o médico do trabalho e doutor em saúde pública Ildeberto Muniz de Almeida, professor da Universidade do Estado de São Paulo (Inesp). "Essa visão tradicional, que centra a explicação do acidente na pessoa da vítima, é individualizadora, reducionista", denuncia.

O auditor-fiscal do trabalho na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Fortaleza Mauro Khouri critica esse modelo de análise centrado na noção do ato inseguro. "Um grande número de acidentes está resumido nisso: de que o funcionário não prestou atenção. Mas não se pode estabelecer um sistema de segurança baseado na atenção da pessoa. Tem que haver outras medidas de proteção coletiva", alerta.

Controle Para o médico e professor da Unesp, essa visão tradicional inibe a prevenção, porque a origem do problema permanece. Pressupõe que o trabalhador faz o que quer, que poderia fazer de outro jeito e que tem o controle absoluto da situação, dos meios disponíveis, dos materiais necessários, o que não é verdade. "Isso significa pensar também que as condições do ambiente em que se dá o trabalho nunca mudam. Mas elas são variáveis, conforme a época, a quantidade de pedidos e a demanda, a disponibilidade de material, entre outros fatores", destaca Almeida. Ele afirma que não é mais possível encontrar casos de acidentes explicados pela culpa exclusiva da vítima.

Na maioria das vezes, alerta Almeida, é graças ao conhecimento que o trabalhador tem para lidar com essas mudanças — a matéria-prima que não está agarrando no equipamento, a máquina que não funciona direito — que ele consegue identificar o problema, corrigi-lo e evitar o acidente. "Ninguém vê, ninguém valoriza o não-acidente", diz. "O certo é que a gestão de segurança deveria explicar as razões pelas quais o trabalhador fez a tarefa sempre com sucesso e não deu certo daquela vez, no lugar de julgá-lo e culpá-lo", afirma o médico.

Em sua avaliação, na maior parte das falhas, estão constrangimentos na organização do trabalho, a necessidade de execução da tarefa em prazo curto ou o surgimento de um problema novo em dado momento, no qual o trabalhador perde a compreensão do que está acontecendo. Para o especialista, no caso da morte de Vargas, a pergunta que deveriam fazer é: "Por que não aconteceu antes?"

Khouri explica que os servidores do Ministério do Trabalho estão orientados a investigar o acidente em todos os seus aspectos e não apenas se a máquina está funcionando ou não. "É preciso descobrir o que contribuiu para o acidente acontecer. Compreender que há fatores diversos, imediatos, intermediários, subjacentes e até latentes, que explicam o ocorrido, que envolvem a organização da empresa, o gerenciamento e a gestão de pessoal, de materiais, de segurança, entre outros pontos.