O globo, n. 30.170, 14/03/2016. Opinião, p. 20

Inversão totalitária

TEMA EM DISCUSSÃO: Execução da pena após a condenação em segunda instância

Por: João Bernardo Kappen

 

Sob os fundamentos ideológicos humanistas da revolução francesa surgiu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. É nessa Declaração que aparece pela primeira vez o princípio da presunção de inocência, pensado como uma forma de garantir proteção ao cidadão contra os desmandos do Estado.

Foi com o surgimento da presunção de inocência que se iniciou uma transformação no processo penal, passando de arma política do autoritarismo estatal a proteção do indivíduo contra os abusos estatais. O ano de 1789 é um marco para os direitos humanos e para o processo penal, pois foi quando a presunção de inocência começou a ser considerada manifestação da dignidade da pessoa humana.

Apesar do avanço humanitário trazido pela Revolução Francesa e pelas ideias iluministas seguiu-se um período da História em que a presunção de inocência foi paulatinamente sendo excluída dos sistemas processuais europeus. A opção ideológica do nazifascismo era a presunção de culpa. Os códigos de processo penal da Itália de 1913 e 1930 eliminaram a presunção de inocência da legislação. O Estado nazista e o Estado fascista viam na presunção de inocência um obstáculo para o exercício do poder punitivo.

Passados os regimes nazista e fascista e a Segunda Guerra, a presunção de inocência surge revitalizada em uma comunidade internacional profundamente preocupada com os direitos humanos. O período do pós-guerra é, pois, o marco de um contexto humanitário que culminou com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela ONU em 1948, e que tem o princípio da presunção de inocência como primado do Estado democrático.

Não por acaso Norberto Bobbio dizia que sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não há democracia. Com efeito, é possível encontrar um traço comum a todos os sistemas processuais dos Estados totalitários: o desrespeito aos direitos humanos. Vejam, por exemplo, que tanto na ascensão dos regimes fascista e nazista quanto nos governos militares latino-americanos, direitos fundamentais como a presunção de inocência foram suprimidos em nome de uma necessidade de maior punição e proteção da sociedade.

Da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, passando pela Declaração dos Direitos do Homem e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, chegamos à Constituição de 1988 com o princípio da presunção de inocência como pilar do Estado Democrático de Direito.

O ser humano sofreu muito para entender a importância de se presumir a inocência de réus em processos penais, mas o STF decidiu que pode cumprir pena de prisão mesmo quem não tenha contra si pena definida, inaugurando, talvez, o mais triste e perigoso capítulo de sua história. Não foi à toa que o ministro Celso de Mello disse que a decisão é uma inversão totalitária.

 

João Bernardo Kappen é advogado

 

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