O globo, n. 30.149, 22/02/2016. Opinião, p. 14

Ação emergencial

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A hipocrisia empurra a gestante pobre para o risco das ‘ clínicas’ que fazem aborto sem segurança

São cada vez mais consistentes as evidências de que haja algum tipo de relação entre o vírus da zika e o aumento, crescente, do número de casos de microcefalia no Brasil. Ainda que o surto permaneça praticamente circunscrito ao país, e com incidência maior em regiões bem delimitadas, ele ainda é um mistério para os pesquisadores.

Mesmo a Organização Mundial de Saúde, por prudência mais conservadora em aceitar como paradigma estatístico dados ainda sujeitos a comprovação, já emite sinais de que se aproxima da tese da associação direta entre microcefalia e o vírus da zika. Mas a questão permanece em aberto, e estima- se que tanto as pesquisas feitas no Brasil quanto os testes patrocinados pela OMS demandam pelo menos seis meses até que os estudos cheguem a conclusões definitivas.

Mais do que compreensível, é imperioso que tais estudos sejam mesmo criteriosos. No entanto, há uma questão objetiva que decorre desse prazo para os laboratórios apresentarem suas conclusões: o Brasil enfrenta uma epidemia, e ainda bem ativa. Os indicadores de nascimento de bebês microcéfalos mantêm uma curva ascendente, e o drama da gestação ( ou do considerável risco de morte, no ventre ou pós- parto) de crianças vítimas dessa má- formação avança para dentro de um número cada vez maior de famílias brasileiras. Isto, a par de o flagelo estar sob a iminência de se espalhar para outros países, o que inclusive levou a OMS a decretar o surto uma emergência sanitária internacional.

É nesse espaço entre um surto explosivo e a perspectiva ainda fluida quanto à conclusão de estudos que devem ser adotadas ações de redução de danos. É crucial que o poder público assegure às gestantes a opção legal de decidir se desejam ou não levar à frente uma gravidez nessas circunstâncias.

Como na discussão sobre o aborto em casos de anencefalia, de alguns anos atrás, a possibilidade de garantir, em lei, a alternativa de interromper a gestação em caso de microcefalia do feto, sob comprovação ou mesmo suspeita, precisa ser analisada sem hipocrisias, dentro de seus aspectos sanitários e sociais.

O tema envolve questões subjetivas, como moral, ética, crenças etc. Mas elas não podem se antepor ao viés objetivo: a zika/ microcefalia implica riscos para a saúde da mulher e do bebê. E, pelo aspecto social, não se pode esquecer a contumaz inépcia do Estado com políticas de apoio às famílias cujos bebês nascem com necessidades especiais.

Resta considerar outro viés objetivo: na verdade, o aborto nessas circunstâncias já é praticado no país, ainda que clandestinamente, por mulheres que tenham recursos para pagar, com algum grau de segurança, tais intervenções. Negar essa realidade, que veda à gestante pobre a alternativa de interromper a gravidez — ou a empurra para o perigo das “clínicas” de fundo de quintal —, é pura hipocrisia. E isso não contribui para enfrentar positivamente o problema.

Direito à vida

 
 
Para se eximir de obrigações, o poder público estimula a opção pelo caminho mais fácil de se livrar de microcéfalos

Os casos de crianças nascidas com microcefalia no Brasil têm deixado a população, em especial as grávidas, em pânico pela gravidade da situação. A má- formação congênita ainda é uma incógnita. Mas os dados dramáticos fizeram com que a Organização Mundial de Saúde ( OMS) decretasse estado de emergência sanitária internacional, levando o poder público, comunidade médica, população e sociedade civil organizada a discutirem e estudarem a fundo a real causa da epidemia. Por aqui, o Ministério da Saúde relaciona o contágio e o desenvolvimento da microcefalia ao vírus zika.

Mas mundo afora várias outras teorias já estão sendo levantadas por especialistas internacionais. É sabido que ela pode ter como causa algumas infecções contraídas pela mãe durante a gravidez e até mesmo uma predisposição genética herdada dos pais. O fato é que ainda há muito desconhecimento e temos a urgência de conter o mosquito transmissor da zika, o Aedes aegypti. No entanto, em meio ao cenário alarmante, outras possibilidades são levantadas para eliminar o problema, como autorizar o aborto de bebês diagnosticados com microcefalia. Inadmissível!

O Direito brasileiro adota a teoria natalista, ou seja, reconhece a total personalidade civil com o nascimento. Já existe decisão no STF no sentido de permitir o aborto no caso de feto sem cérebro, chamado de anencéfalo, que dificilmente irá sobreviver. Não é o mesmo que acontece com os bebês com microcefalia. Nesses casos, existe uma condição neurológica deficiente em vários graus, mas consciente. É um erro tratar os dois casos da mesma forma. Por isso, afirmo: o momento é de cautela e respeito à nossa legislação.

Temos conhecimento de muitas histórias de microcéfalos que têm conseguido se desenvolver com qualidade em seu grau de deficiência e que vivem dignamente. Isso prova que o aborto de fetos com a má- formação nada mais é que uma agressão ao direito à vida, garantido em nossa Constituição, e que deve ser resguardado como fundamental e sagrado, respeitando o curso natural. Perante depoimentos de mães que receberam o diagnóstico da doença e agradecem pelos filhos, nossa postura não pode ser diferente na defesa pelo direito à vida e na ajuda para que essas famílias tenham o amparo do Estado no enfrentamento das dificuldades. Nada justifica o aborto como solução. O recurso vem da prevenção responsável e engajada do poder público, em um esforço conjunto de ações educativas para a melhora do saneamento básico e, claro, da fundamental cooperação da população. O que não podemos aceitar mais é a histórica negligência do poder público, que para se eximir de responsabilidades poderá optar pelo caminho mais fácil, liberando o aborto de microcéfalos.