‘A gente só pensa em cargo’

 

Integrantes do partido, que evitaram rebater publicamente as declarações, apostam que o ex- presidente tenta se descolar da presidente Dilma, que ficou irritada com as críticas, segundo relato de um ministro

MICHEL FILHO

Mais uma autocrítica. Dias depois de localizar a popularidade da presidente Dilma e a sua própria no “volume morto”, Lula não poupa o partido que fundou em 1980: “O PT está velho”

Após criticar a presidente Dilma e o PT num encontro fechado com religiosos, o ex- presidente Lula atacou publicamente o partido em seminário organizado por seu instituto, em São Paulo, com a presença do ex- primeiroministro espanhol Felipe González. “A gente acreditava em sonhos. Hoje a gente só pensa em cargo, em emprego”, disse. Lula afirmou que o partido “perdeu a utopia”: “O PT está velho. Já estou com 69. Já estou cansado, já estou falando as mesmas coisas que falava em 1980.” Segundo um ministro, a declaração de que ele e Dilma já estão “no volume morto” e que o PT está abaixo do “volume morto” chateou a presidente. Alguns petistas, que só comentaram sob anonimato, acham que Lula tenta se descolar de Dilma. - SÃO PAULO E BRASÍLIA- Quatro dias depois de criticar abertamente a presidente Dilma Rousseff e o governo numa reunião com religiosos católicos, o ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou as baterias ontem para o PT, em uma nova autocrítica bastante contundente. Para Lula, o partido que fundou há 35 anos “está velho”, sem projeto e paralisado pela burocracia porque “só pensa em cargos”. A avaliação foi feita durante debate promovido pelo Instituto Lula, em São Paulo, com o ex- presidente de governo espanhol Felipe González. Para o petista, o PT “perdeu um pouco a utopia”.

O partido não reagiu diante das declarações. O presidente da legenda, Rui Falcão, que estava no mesmo debate, não quis falar com a imprensa na saída. Dirigentes petistas ouvidos ontem pelo GLOBO dizem que o ex- presidente tem mostrado insatisfação nos últimos meses tanto com a acomodação da legenda quanto com o desempenho de Dilma no segundo mandato. O tom, no entanto, tem subido a cada desabafo.

— Eu lembro como é que a gente acreditava nos sonhos, como a gente chorava quando a gente mesmo falava, tal era a crença. Hoje, precisamos construir isso, porque hoje a gente só pensa em cargo, a gente só pensa em emprego, a gente só pensa em ser eleito, e ninguém hoje mais trabalha de graça — disse Lula ontem.

O ex- presidente disse estar “cansado” e falou que o partido precisa se renovar com pessoas mais jovens e “mais ousadas, com mais coragem”.

— O PT está velho. Eu, que sou a figura proeminente do PT, já estou com 69 ( anos), já estou cansado, já estou falando as mesmas coisas que eu falava em 1980. Fico pensando se não está na hora de fazer uma revolução neste partido, uma revolução interna — disse o expresidente, e completou: — Temos que decidir se nós queremos salvar a nossa pele e os nossos cargos, ou se queremos salvar nosso projeto.

DESABAFOS PREOCUPAM O PARTIDO

Na quinta- feira, conforme O GLOBO revelou, Lula disse a religiosos católicos, em um encontro no seu instituto, que é um “sacrifício” convencer Dilma a viajar pelo país e defender o projeto petista. Ele afirmou que, em relação à popularidade, ele e ela estão no “volume morto”, enquanto o PT está “abaixo do volume morto”. Ontem, ele concentrou no partido a sua insatisfação.

A escalada de desabafos de Lula tem preocupado o partido. Dirigentes ouvidos pelo GLOBO, que preferiram não se manifestar publicamente, disseram que o diagnóstico de Lula é certeiro, mas o vazamento das críticas, sobretupartido. do contra Dilma, no momento em que a presidente amarga a sua pior avaliação, serve para dar munição à oposição e aumentar o fosso entre a presidente e o partido. A interlocutores, Lula diz que nenhuma dessas críticas é novidade para Dilma, já que ele não esconde sua posição quando os dois se reúnem, de forma privada, em São Paulo.

As reclamações sobre Dilma, principalmente em relação às medidas que afetam direitos trabalhistas, são endossadas por dirigentes da sigla. No entanto, o congresso do PT, há menos de duas semanas em Salvador, eliminou do documento final até mesmo a expressão “ajuste fiscal”.

Para alguns petistas, essa narrativa pode ser um ensaio de Lula para iniciar um descolamento de Dilma. Já um dirigente diz que eles são inseparáveis como “a corda e a caçamba”. Em outra frente, as críticas de Lula encontraram ressonância em alas do PT que fazem esse debate interno desde as manifestações de junho de 2013. O problema é que, na instância do partido em que essas questões deveriam ser discutidas, Lula não foi por esse caminho.

— Eu acho que ele está certo. Isso já vem sendo discutido principalmente no âmbito das redes sociais, área que eu coordeno. A militância vem criticando o excesso de burocratização e de institucionalização do Ele está vocalizando a militância. Há crítica muito grande à acomodação dos petistas. O partido precisa voltar- se mais para a juventude — disse um dos vicepresidentes do PT, Alberto Cantalice.

Para o deputado Paulo Teixeira ( PTSP), um dos líderes do grupo Mensagem ao Partido, o teor da fala de Lula é o mesmo de uma carta divulgada recentemente por 35 parlamentares, mais da metade da bancada, que pedia a renovação da legenda, inclusive com novas eleições internas. A carta foi rejeitada pela maioria do último congresso do PT, cuja corrente interna mais numerosa, a Construindo um Novo Brasil ( CNB), é a de Lula.

— A gente esperava que o congresso decidisse por aí, mas decidiu por nada — reclamou o deputado.

NOVAS CRÍTICAS À IMPRENSA

Ao lado de González, Lula também voltou a reclamar da imprensa e acusou veículos de “fazer oposição pelo editorial”.

— Aqui no Brasil nós reclamamos muito da mídia. A oposição é a imprensa. Em alguns jornais, eles fazem oposição pelo editorial. Ao invés de brigar com isso, temos de saber usar melhor a internet, as redes sociais — disse Lula, que defendeu mais uma vez a regulação da mídia.

 

Críticas do ex- presidente incomodam Dilma, que busca dar boas notícias

 

 A ex- presidente Dilma Rousseff ficou bastante incomodada com as críticas abertas do ex- presidente Lula à sua gestão no encontro que ele teve com religiosos na semana passada. As declarações de que Dilma está no “volume morto”, por causa da baixa popularidade, e, principalmente, de que ela mentiu na campanha à reeleição ao dizer que não mexeria em direitos trabalhistas e não faria ajuste fiscal foi o que causou mais mal- estar no governo.

JORGE WILLIAM

Agenda positiva. Dilma e ministros como Mercadante lançam Plano Safra

A presidente confidenciou a ministros próximos não ter gostado do que Lula disse, mas que entende o discurso. Na avaliação do Planalto, Lula falou para agradar à plateia, sem se dar conta de que a Igreja Católica tem mantido uma visão crítica do governo. Ele também teria tentado agradar aos lulistas, as correntes do PT que têm se posicionado contra o ajuste fiscal. Mas, para os mais próximos a Dilma, ao bater no governo, Lula acaba atingindo também a construção de sua candidatura para 2018 — o que só agradaria à oposição. Ainda assim, ministros petistas defenderam Lula. Para um deles, Lula foi traído pelo vazamento da conversa:

— Teremos uma semana de ruídos.

A principal preocupação é com o trecho em que o ex- presidente afirma que Dilma errou ao dizer, durante a campanha, que não mexeria em direitos trabalhistas “nem que a vaca tussa”. E mexeu, disse Lula, contrariando a versão do governo de que houve apenas ajustes em benefícios como seguro- desemprego, abono salarial e pensões. Na conversa revelada pelo GLOBO, Lula também lembrou que Dilma afirmou na campanha que não faria ajuste, que era “coisa de tucano”. Lula disse que Dilma não só fez, como mereceu ser alvo de propaganda do PSDB na TV que a acusou de mentir. Sobraram queixas até para o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante.

Diante das críticas abertas de Lula, o presidente nacional do PSDB, senador Aécio Neves ( MG), fez questão de “colar” o ex- presidente ao governo de Dilma. O tucano argumentou que Lula não pode fugir à responsabilidade pela situação atual ao usar como estratégia os ataques à sua sucessora. Para ele, o governo está “sitiado”.

— Acho que o presidente Lula, mais do que ataques à atual presidente, sua criatura, tem que reassumir sua parcela de responsabilidade pelo que vem acontecendo no Brasil. E não há como descolar uma coisa da outra: o governo é o PT, o governo é Dilma, o governo é Lula. Foi assim nos momentos positivos e será assim neste momento de grandes dificuldades. Lamentavelmente, essa obra é uma obra conjunta do ex- presidente Lula, da presidente Dilma e, obviamente, do PT — disse Aécio, derrotado por Dilma na eleição presidencial de 2014.

Aécio atribuiu à “crise moral sem precedentes” a aprovação de apenas 10% de Dilma na última pesquisa Datafolha. Na sondagem, o tucano aparece na liderança das intenções de voto para a Presidência em 2018 com 35%, contra 25% de Lula.

— Essa não é a agenda do momento. O PSDB tem outras responsabilidades que antecedem a disputa de 2018, que é fiscalizar as ações do governo, denunciar as irregularidades e apresentar alternativas — desconversou.

No Planalto, a expectativa é que Dilma só recupere sua popularidade quando a economia começar a reagir, o que é projetado para o ano que vem, talvez com uma pequena retomada no final deste ano.

Enquanto isso, o governo pretende apostar na agenda positiva, como o lançamento da terceira fase do Minha Casa Minha Vida, o programa Banda Larga para Todos, investimentos no setor energético e o já lançado plano de concessões em infraestrutura.

Ontem, Dilma lançou o Plano Safra para a agricultura familiar. Cobrada por Lula por não oferecer “boas notícias”, Dilma fez um esforço ontem ao anunciar aumento de 20% nos recursos em relação a 2014, mesmo percentual aplicado ao Plano Safra para médios e grandes produtores. No total, serão liberados R$ 28,9 bilhões para os pequenos. Ao lado de Dilma, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, anunciou a ampliação do Minha Casa Minha Vida em áreas rurais e um novo plano de reforma agrária, um aceno para movimentos sociais. Dilma é criticada por ter assentado, em média, menos da metade de famílias do que Lula e Fernando Henrique.

 

GAROTINHO CUNHOU ‘ PARTIDO DA BOQUINHA’

 

Tão criticada agora pelo ex- presidente Lula, a avidez por cargos públicos levou o PT a ser chamado de “partido da boquinha”, em outubro de 1999, pelo então governador do Rio, Anthony Garotinho. À época, o ex- governador, que estava no PDT, usou a disputa por cargos em sua gestão para atacar o PT e sua vice, a atual deputada Benedita da Silva. O partido dela foi decisivo na aliança que levou Garotinho ao Palácio Guanabara, mas, no poder, houve o rompimento. Quando a relação entre PDT e petistas desandou, Garotinho passou a se queixar da fome dos petistas por secretarias. O PT, por sua vez, criticava o esvaziamento de suas pastas. “Eles ( petistas) têm mais de 200 cargos e querem mais”, dizia, ao acusar o PT de fisiologismo.