Apenas 30% das unidades separam jovens pelo porte físico

 

É gritante o descompasso entre o sistema socioeducativo previsto na legislação e a realidade. Além do desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), unidades para infratores do país inteiro ignoram as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade. Uma delas é a que determina a separação dos jovens por porte físico, o que evita a violência, inclusive sexual, entre os reeducandos.

Segundo a pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), pouco mais de 30% das unidades atendem a essa determinação. Na Região Sudeste, 73% das unidades não fazem essa separação. Na Região Sul, o percentual de unidades que desrespeitam a regra é de 68,9%; no Norte, 48,8%, no Nordeste, 68,8% e no Centro-Oeste, 64%.

A mistura é geral na cela onde está o jovem levado para o Centro de Internação para Adolescentes de Anápolis ( GO) por ter desacatado um policial e resistido à prisão. Ele recebeu a medida socioeducativa mais leve, a prestação de serviços à comunidade, mas não a cumpriu. Por isso, foi internado. Hoje, convive com meninos que praticaram delitos mais graves, como homicídio e latrocínio.

— Sou o mais leve aqui. Meu problema é a droga. Eu era total flex, usava maconha, cocaína, crack, lança — conta.

Há um ano e três meses internado, ele passou por sucessivas crises convulsivas, atribuídas a um processo de abstinência. A unidade conseguiu uma vaga em uma clínica de Anápolis para o jovem de 17 anos, que aguarda ansioso uma autorização para começar o tratamento contra a dependência química.

 

Sentenciados convivem com provisórios

 

Outra norma burlada por 55,2% das unidades pesquisadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é a que prevê a separação rigorosa de menores apreendidos em situação provisória dos já sentenciados. As unidades do Centro- Oeste aparecem com mais alto percentual com relação ao descumprimento dessa regra: 72% não separam os adolescentes internados de acordo com a sua situação processual. O Sudeste tem o mais baixo percentual, com 47,5%.

A pesquisa indicou ainda que só 16,1% das unidades do país fazem a separação por ato infracional, cuja ideia é evitar a troca de experiências entre adolescentes com histórico infracional bastante diverso. Segundo a pesquisa do CNMP, 54,6% dos estabelecimentos alegaram que não tinham espaço para fazer as separações dos jovens seguindo as regras.

Ao menos 63% das unidades socioeducativas ignoram a regra que determina número máximo de 40 adolescentes em cada estabelecimento de internação. Além de evitar o modelo de grandes complexos e incentivar a atenção individual, a ideia é tornar o sistema mais pulverizado, garantindo a proximidade da família.

A realidade, porém, é outra. Pelo menos 30,3% dos menores infratores do país estão internados em centros distantes da casa deles ou dos pais. Situação de um jovem que cumpre medida socioeducativa por homicídio em Anápolis, a 400 km de Caiapônia, cidade goiana onde vive a família. O pai o visita de dois em dois meses.

Uma opção melhor para os parentes dele seria Goiânia, mas não havia vagas. O garoto de 17 anos conta que vendia drogas. Quando foi cobrar um cliente, o homem o ameaçou de morte. Ele reagiu com uma faca, matando-o.

— Boto fé que vou dar conta de trabalhar com meu pai, ele é torneiro mecânico — planeja o jovem, esperando um futuro melhor após ser solto.

Dividir os internos por idade é outro requisito legal, cumprido por apenas 23,7% das unidades. No Nordeste, esse percentual chega a 35,4% e no Centro-Oeste a 32%.

 

‘É um tratamento muito indigno’

 

Por que o sistema socioeducativo da vida real é tão distinto do previsto no ECA e na lei que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, em 2012?

Há uma despreocupação dos estados e dos municípios em cumprir a legislação. Em muitos locais, foram ajuizadas ações pelo Ministério Público ou Defensoria Pública para reforma ou construção de unidades. O Ceará e o Rio Grande do Norte, por exemplo, mesmo com sentença judicial não entregam as unidades novas. Por outro lado, tem o descaso dos municípios, responsáveis por políticas básicas de apoio ao egresso ou de medidas em meio aberto.

Há antipatia da sociedade em relação à melhorias no sistema socioeducativo ou prisional?

Sim. Não estou falando que os adolescentes precisam estar num local de luxo. As pessoas, muitas vezes, quando me ouvem falando, respondem: “mas eu não tenho tal coisa na minha casa”. Convido as pessoas a entrarem numa unidade de internação e verem como vivem esses adolescentes. E pensar se, naquelas condições, a pessoa também não participaria de um movimento de rebelião. Há um tratamento muito indigno em parte das unidades do país, não em todas.