Título: Sobre os presos fotografados seminus
Autor: Vidigal, Edison
Fonte: Correio Braziliense, 18/08/2011, Opinião, p. 33

Ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e professor de direito, advogado em Brasília

A igualdade de todos em obrigações e direitos perante a lei é o princípio basilar da República. Nada disso funciona se o Estado não é democrático nem de direito.

Depois de duas décadas de autoritarismo militar, as liberdades públicas e as garantias individuais chutadas para escanteio, o Estado dono de tudo, a exceção predominando, a dissidência consentida sob ameaças de cassação e sofrendo constrangimentos, silenciada ou presa, torturada ou exilada, ou então sumida para nunca mais, pactuamos uma anistia ampla, geral e irrestrita ¿ uma transição para a democracia.

Daí a Constituição da República Federativa do Brasil, que não só os agentes públicos, mas, também, todos os cidadãos deveriam ler rigorosamente todos os dias, como os que, com fé religiosa, leem a Bíblia e, apreendendo seus ensinamentos, defendem-nos e os praticam.

É princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, por exemplo, a dignidade da pessoa humana. Entre os direitos e garantias fundamentais está o de que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

O tratamento desumano ou degradante é, na maioria dos casos, um dissimulador da tortura. O tratamento degradante, esse então, é uma tortura mais requintada, sem arranhões físicos, mas com prolongadas ou intermináveis lesões morais e de incicatrizáveis feridas psicológicas.

E, assim compreendendo, a Constituição assegura aos presos o respeito de parte dos agentes públicos, sejam policiais, magistrados ou do Ministério Público, não só à sua integridade física, mas também à sua integridade moral.

Adiante manda a Constituição que a pessoa civilmente identificada não será submetida à identificação criminal. Essa determinação surgiu para acabar com aquelas situações horrorosas a que eram submetidos os presos, sendo constrangidos a sujarem os dedos em potinhos de tinta preta e os esfregarem em fichas e, ainda, àquelas fotos ridículas, em ambientes carregados de intimidações e clima de propositais humilhações.

Há exceções, sim, excepcionalíssimas, para a identificação criminal do preso que já tenha sido antes identificado civilmente. A Constituição Federal, impondo limites à lei, autoriza à polícia a só proceder a nova identificação do preso se o seu documento de identidade apresentar rasura ou indício de falsificação. Se o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado. Se o indiciado portar documentos distintos, com informações conflitantes entre si.

Os presos que foram levados para o Amapá, entre os quais um ex-deputado federal e um secretário executivo de ministério do atual governo da presidente Dilma, não se enquadravam em nenhuma dessas hipóteses.

As fotos a que foram obrigados, posando seminus, eles próprios segurando cartazes em que se autoacusam dos delitos que, apesar da fase ainda investigatória, já lhe são imputados, essas fotos falam por si e carregam forte denúncia de escancarada violação dos direitos constitucionais dessas pessoas.

Os presos que aparecem nessas fotografias tiradas pela polícia e depois vazadas para a imprensa, e daí para infinitas páginas da internet, sob o pretexto de que se tratava de identificação criminal, esses presos, na verdade, foram vítimas do autoritarismo do Estado nacional brasileiro, em claras ofensas à Constituição da República Federativa do Brasil.

Ninguém será submetido a tratamento degradante e eles o foram. É assegurado ao preso o respeito à sua integridade moral. E eles foram ofendidos em sua integridade moral. O civilmente identificado não será submetido à identificação criminal. E eles o foram, mesmo sendo público e notório não haver qualquer dúvida quanto à identidade civil de cada um.

Houvesse alguma dúvida quanto à identidade civil de cada um deles, como é então que foram cumpridos um a um, em todos os endereços indicados, os mandados de prisão? Esses procedimentos entusiasmados, mas à margem da ordem legal, irão resultar, com certeza, em sucessivas ações por danos morais e abusos de poder contra a União e nós, contribuintes, é quem iremos, como sempre, pagar a conta. A lei tem que ser para todos, sim. Os abusos em nome da lei, não. Para ninguém.