Aflito com a escassez de dólares, o governo argentino desarrumou sua economia ao montar um vasto cerco a importações e aos gastos de divisas de seus cidadãos no exterior. A obrigatoriedade de aprovação de compras no exterior, mesmo as provenientes de seus sócios no Mercosul, foi uma forma de controle desesperada para evitar a sangria de suas reservas internacionais, que chegaram a cair abaixo dos US$ 30 bilhões. O controle de divisas foi auxiliado pela recessão, que deve se prolongar neste ano, e a Argentina recompôs, com a ajuda de outros expedientes, parte de suas reservas. As exportações brasileiras para lá caíram 27,2% no ano passado.

Como a Venezuela e outros governos da América Latina, a Argentina encontrou um financiador ávido e interessado para suprir os dólares que faltam e um comprador voraz de matérias primas: a China. Em setembro, fechou um acordo de swap de divisas de US$ 11 bilhões com o governo chinês, complementado pela aprovação, pelo Senado, no último dia útil de 2014, de um Marco de Cooperação Econômica e de Investimentos com a China que deixou ressabiados igualmente empresários argentinos e brasileiros. Na semana passada, Cristina Kirchner assinou em Pequim acordos que envolvem negócios de US$ 21 bilhões.

O acordo com os chineses dá a eles as vantagens que já dispõem os sócios do Mercosul para investimentos no país - ou até maiores, se vierem isenções tarifárias, uma possibilidade não descartada - , desde que os financiamentos venham junto. Pelo marco de cooperação, a mão de obra chinesa terá os mesmos direitos que a argentina, uma demonstração explícita de que, com crédito, máquinas e equipamentos, os chineses pretendem trazer trabalhadores para seus projetos. Essa tem sido, por exemplo, uma exigência que a China usualmente apresenta junto com seus projetos, mas cabe aos países rejeitá-las ou não. Os países africanos a aceitam, o Brasil e os europeus, não.

Para garantir a participação chinesa, o acordo elimina, a critério do governo, a necessidade de licitação para as obras, medida que tem o potencial de alijar empresas do Brasil e dos demais membros do Mercosul - e, temem os empresários argentinos, companhias do próprio país.

Os projetos se estendem a vários setores e têm, como objetivo formal, aumentar a capacidade de exportação da Argentina para a China - energia, mineração, indústria, agricultura etc. Na prática, a história é exatamente o contrário. A China, como faz em projetos na África e América do Sul, pretende assegurar os suprimentos de matérias primas e abrir mercados para seus bens manufaturados. Como a Argentina só exporta para a China bens primários, como a soja, a ampliação de sua capacidade exportadora não será grande coisa. De fato, deverá intensificar a abertura do Mercosul às mercadorias chinesas, em condições econômicas vantajosas, por decisão unilateral de apenas um país.

Assim, os chineses se comprometeram a colocar US$ 5 bilhões em duas hidrelétricas na Argentina, fornecendo tudo, dos equipamentos ao dinheiro. Mais US$ 2,5 bilhões serão destinados à recuperação de ferrovias. As empresas do Mercosul perdem, então duplamente: ficam de fora de licitações de grandes obras e deixam de fornecer bens de capital para empreendimentos.

As dificuldades econômicas da Argentina continuam sendo obstáculos quase intransponíveis para que o Mercosul avance nas negociações com a União Europeia. Essas mesmas dificuldades são também esgrimidas há um bom tempo para que o país use todo o tipo de controle arbitrário sobre o comércio regional, em prejuízo de seus sócios. As estatísticas são eloquentes a esse respeito. Enquanto as vendas dos países do Mercosul para a Argentina caíram 24% em 2014, as da China recuaram 5%. As exportações brasileiras são as principais vítimas das intervenções do governo argentino. A venda de bens de capital teve redução de 34% e a da China, 13%. Para bens intermediários, a queda para o Brasil foi de 9%, enquanto houve aumento das compras da China de 9%.

Os acordos entre Argentina e China significam o aprofundamento do processo de deslocamento das vendas brasileiras e dos demais sócios do Mercosul no mercado argentino. Ilustram também a desimportância que a Argentina dá ao bloco comercial. O governo brasileiro, condescendente com os ultimatos argentinos, deve fazer vista grossa às novas ações de Cristina Kirchner.