Arepressão a operários considerados subversivos foi uma das principais ações do golpe de Estado de 1964, e aconteceu antes mesmo da tomada do poder pelos militares. A análise é do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que será divulgado oficialmente amanhã. Os oito mortos a tiros de metralhadora na porta de uma siderúrgica em Minas, em outubro de 1963, foram um prenúncio do que se instalaria em algumas empresas públicas e privadas nos anos seguintes, e que, entre 1964 e 1988, resultaria em mais 114 assassinatos. Além das mortes, as listas enviadas aos órgãos de segurança e a arapongagem foram outras estratégias usadas para reprimir os operários.

Intervenções em sindicatos, com destruição patrimonial, demissões e cassações de lideranças, são apontados como outros reflexos da opressão. “Nós sistematizamos no nosso documento essa trajetória de violações de direitos que o movimento sindical sofreu desde antes de 1964”, disse uma das autoras do relatório Rosa Cardoso durante evento em São Paulo.

Em 1963, o massacre de Ipatinga (MG), como ficou conhecido o episódio em que policiais militares dispararam tiros de metralhadora contra manifestantes que protestavam em frente à Usiminas — então uma empresa estatal —, mostra o tratamento que as reivindicações trabalhistas recebiam mesmo antes da instalação dos militares no poder. Depois da instauração da ditadura, “grandes empresas estatais tornaram-se verdadeiros ‘laboratórios’ de um sistema de controle e repressão fabril”, diz ainda o documento revelado ontem pela CNV.

A Petrobras, vista como estratégica pelos militares, foi considerada um “ambiente propício para a implantação de um sistema de monitoramento e repressão exemplar, pensado como peça fundamental para a segurança nacional”. O monitoramento dos operários feito por um braço do Serviço Nacional de Informações (SNI) e a militarização da empresa “funcionaram como modelo para outras grandes empresas”. Ainda segundo a CNV, dos 3 mil empregados da estatal suspeitos de subversão, 712 foram indiciados em um Inquérito Policial Militar (IPM) e 516 demitidos até outubro de 1964, em apenas seis meses de ditadura.

Cooptados pelo Ministério do Trabalho, muitos dos novos diretores de sindicatos compunham uma grande rede de delação de trabalhadores “subversivos”. Em alguns casos, policiais chegaram a se incorporar à segurança privada das empresas, se infiltrar na linha de produção e também nos ônibus. As “listas negras”, já utilizadas pelo empresariado para impedir a recontratação de trabalhadores demitidos por razões políticas, passaram a fazer parte do sistema de repressão.

Embora haja notícias de “suicídios” de sindicalistas, a Comissão Nacional da Verdade conseguiu provar a relação entre 114 assassinatos de trabalhadores e a repressão do regime militar. Desses, 35 eram lideranças sindicais. Os operários são os que somam mais mortos (53), seguidos por bancários (16) e jornalistas (11). Também constam na lista auxiliares de escritório, comerciários, mecânicos e vendedores, entre outras profissões.

Empresas privadas também são apontadas pela CNV como financiadoras da montagem de aparelhos repressivos, ou mesmo, como integrantes do esquema de repressão contra os trabalhadores. “Uma profusão de documentos” comprovaria a cooperação da Volkswagen com órgãos de segurança, como o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). A Ford seria uma das fábricas “militarizadas” citadas no relatório. Procurada, a montadora não respondeu à reportagem, assim como a Usiminas. Contactada no fim do expediente, a Petrobras informou não ter tempo hábil para responder. A Volkswagen informou que “investigará qualquer indicação de uma eventual participação de funcionários no fornecimento de informações ao regime militar”, e que ainda não foi contatada pela CNV.


Memória
•Assassinatos camuflados
As mortes causadas pela repressão nem sempre tiveram a repercussão do massacre de Ipatinga (MG). Em muitos dos casos, a versão oficial de morte por suicídio camuflava os assassinatos de trabalhadores e lideranças sindicais. Foi assim com Antogildo Pascoal Viana, comunista ligado ao sindicato dos portuários de Manaus. Morto em 8 de abril de 1964, ele é considerado um dos primeiros sindicalistas assassinados pela ditadura. Milton de Oliveira, do Sindicato dos Gráficos do Rio de Janeiro, teria se jogado da janela da entidade.

Entre os 11 jornalistas da lista que será divulgada amanhã, o caso de maior repercussão é o de Vladimir Herzog. Croata de nascimento e brasileiro naturalizado, ele era diretor do departamento de jornalismo da TV Cultura de São Paulo quando foi convocado a prestar esclarecimentos ao Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Vlado, como era conhecido, compareceu voluntariamente ao órgão do Exército em 25 de outubro de 1975 para explicar sua suposta ligação com o Partido Comunista Brasileiro. Acabou morto no local, no mesmo dia.

Assim como aconteceu com algumas lideranças sindicais, a certidão de óbito do jornalista indicava suicídio: ele teria se enforcado com um cinto do uniforme de presidiário. Três anos depois, após testemunhos de outros presos no DOI-CODI o assassinato foi confirmado.


Lula depõe por uma hora à CNV
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu um depoimento ontem para a Comissão Nacional da Verdade. Em pouco mais de uma hora, ele falou das dificuldades enfrentadas na década de 1970, quando a ditadura tornou-se mais ferrenha, época em que liderou greves na região do ABC Paulista. “Os militares cometeram a burrice de me prender”, disse, no encontro. Lula foi condenado em primeira instância pela Justiça Militar, depois acabou absolvido no Superior Tribunal Militar (STM). Ele foi afastado da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Mais tarde, porém, o mesmo tribunal decidiu pela sua absolvição. Antes de Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também foi ouvido pela comissão.