Título: Setores questionam a reforma psiquiátrica
Autor: Lavoratti,Liliana
Fonte: Gazeta Mercantil, 18/12/2008, Brasil, p. A8

São Paulo, 18 de Dezembro de 2008 - A reforma da reforma psiquiátrica é defendida por psiquiatras, parlamentares e empresários da área hospitalar, que apontam várias conseqüências negativas das mudanças introduzidas pela política de saúde mental instituída no País a partir da aprovação, no Congresso Nacional, da lei federal número 10.216, de abril de 2001, conhecida como Lei Paulo Delgado, em referência ao ex-deputado do PT de Minas Gerais que apresentou a proposta em 1989.

Quase oito depois da aprovação da lei que orientou a implantação de um novo modelo psiquiátrico no Brasil, a polêmica que marcou os doze anos de debate no Congresso Nacional continua acesa. "Existe hoje um problema grave que o Ministério da Saúde não quer ver: a falta de capacidade do sistema público para atender à crescente demanda da população brasileira de serviços de assistência médica e hospitalar na área de saúde mental", afirma o deputado federal de oposição e ex-secretário de Saúde do Rio Grande do Sul por três vezes, Germano Bonow (DEM-RS).

O novo modelo psiquiátrico é baseado na extinção progressiva dos manicômios e na desospitalização, substituindo esses locais de longa internação por outros recursos assistenciais integrados à comunidade, como os vários tipos de Centros de Assistência Psicossocial (CAPS), ambulatórios, residências terapêuticas e concessão de benefícios assistenciais (Programa de Volta para Casa e Lei Orgânica da Assistência Social) para incentivar os familiares a cuidar desses pacientes. Segundo o censo realizado pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo nos 56 hospitais psiquiátricos existentes na capital e interior, ainda existem 6.349 pacientes - o equivalente a mais da metade dos 11.944 leitos psiquiátricos disponíveis para a população paulista - morando nessas instituições em média há quinze anos, tamanha a dificuldade de passar do sistema de tratamento anterior para o atual.

"O SUS não consegue internar todos os que procuram vagas, os CAPS também não porque existem apenas 1.291 no país inteiro. Quem não pode pagar hospital privado fica nas ruas ou nos presídios. A alternativa da sociedade brasileira está sendo recorrer à assistência filantrópica", afirma Bonow, que é médico sanitarista. "O governo gaúcho está procurando alternativas para ampliar a oferta de tratamentos por meio de convênios com hospitais para abertura de vagas", acrescenta o parlamentar gaúcho.

Álcool e outras drogas

Entre os motivos citados por Bonow para revisar a reforma psiquiátrica estão as consequências, para a população, do fechamento de cerca de 80% dos leitos psiquiátricos no País - eles passaram de 120 mil em 1989 para 36.797 neste ano. Segundo ele, a "omissão do Estado" em relação à crescente demanda hospitalar em decorrência da ampliação do uso de álcool e outras drogas fez surgir 42 fazendas vinculadas a várias igrejas para tratamento de dependentes, "sem nenhuma orientação do poder público muito menos técnica".

Somente no RS, hoje cerca de cinco mil pessoas estão sendo tratadas por essas instituições, a maioria delas sem a participação de um médico sequer, acrescenta o parlamentar, que chegou a participar do Movimento de Luta Antimanicomial e diz ter se tornado um crítico das mudanças depois de perceber várias "distorções". Uma delas é a disparidade na distribuição dos leitos psiquiátricos. Segundo Bonow, Niterói (RJ), com 600 mil habitantes, possui 320 leitos psiquiátricos, enquanto o estado do Pará, com 6 milhões de habitantes, conta com apenas 60 vagas para internação dessas doenças. "O Paraná sozinho tem o mesmo número de leitos que o Rio Grande do Sul, Bahia, o Acre, Amazonas, Amapá, Roraima e Rondônia."

"Ninguém está defendendo a volta do sistema antigo, onde predominavam os manicômios, mas não dá para achar que o mundo virou cor-de-rosa", assinala o parlamentar, que tem ocupado a tribuna da Câmara para defender a reforma da reforma psiquiátrica.

Na avaliação do diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas do Estado de São Paulo e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), psiquiatra Valentim Gentil Filho, um dos mais contumazes críticos da reforma psiquiátrica no Brasil, "o novo sistema está criando uma geração de doentes no país. O custo da doença mental, que já é alto para a sociedade e o Estado, aumentará muito se não forem tomadas providências sérias e imediatas".

Segundo ele, pesquisas epidemiológicas internas coincidem com as tendências internacionais: até 30% da população algum dia terá um diagnóstico psiquiátrico, desde os mais leves até os graves. Organismos internacionais prevêem que entre as dez principais causas de incapacidade e sobrecarga econômicas no mundo, cinco pertencem à área da psiquiatria. A depressão é a principal.

Na opinião de Gentil, a reforma foi feita como se o sistema hospitalar ainda fosse o de 1960, sem considerar o esforço de modernização empreendido pela rede hospitalar. "Manicômio tem de acabar mesmo, mas os hospitais hoje são locais de tratamento de doentes e, portanto, estão longe de se caracterizarem como depósitos de loucos", comenta. Como exemplo, ele cita o próprio Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas do Estado de São Paulo, que no governo Mário Covas passou por uma ampla reforma e hoje é considerado um dos centros de excelência na área no País e exterior. "Aqui não se vê loucos nos corredores, mas doentes circulando livremente e recebendo o devido tratamento", completa.

Médico ou psicossocial

Outro equívoco da reforma, segundo Gentil, foi desconstruir a doença mental como um problema médico e transformá-la em um problema psicossocial. "Não adianta procurar o glamour da doença mental, é algo que requer tratamento médico-hospitalar", argumenta. Da mesma forma, condena a "ideologização" da questão, fazendo com que todos os hospitais psiquiátricos fossem identificados com os manicômios expandidos durante o regime militar para outras finalidades, como auxiliar o aparato de controle social e não propriamente tratar de portadores de transtornos mentais.

"Se a rede de serviços, com equipamentos alternativos de atendimento às necessidades médicas e sociais não está suprindo a demanda, os doentes ficam soltos ao relento", afirma Gentil, que lembra os casos abordados no filme "Omissão de Socorro", no qual familiares de pacientes em crise aguda descrevem a dificuldade em encontrar internação na capital paulista. Outro ponto de discordância é o que Gentil denomina ausência de ênfase na prevenção no âmbito da política de saúde mental. "Faltam programas de prevenção efetiva, o que poderia de fato reduzir a demanda por leitos hospitalares. Faltam também campanhas alertando para as evidências científicas de que maconha faz mal à saúde, da mesma sobre os efeitos, na saúde mental, do uso de álcool e outras drogas, que aumentam a vulnerabilidade ao desenvolvimento de transtornos mentais."

Segundo ele, está na hora de parar a briga de quem é contra ou a favor de hospitais psiquiátricos. "Acabar com leitos não significa acabar com as doenças se não existir um sistema adequado e amplo de prevenção". Mas como fazer isso? Na avaliação de Gentil, após um amplo debate promovido pelos legislativos federal, estaduais e municipais, envolvendo gestores públicos, universidades, médicos, especialistas em direitos humanos, familiares e hospitais prestadores de serviços, deveria ser criado um conjunto de diretrizes para a ação dos governos das três esferas de Poder, determinando como deve ser a aplicação dos recursos existentes para a saúde mental no Brasil.

Conforme dados oficiais, em 2007 o Ministério da Saúde gastou R$ 1,2 bilhão em saúde mental, contra R$ 619 milhões em 2002. No ano passado, os gastos hospitalares somaram R$ 439 milhões - 37% do total -, enquanto R$ 760 milhões foram desembolsados em ações extra-hospitalares (CAPS, centros comunitários, atendimentos ambulatoriais, medicamentos, benefícios de prestação continuada como o Programa de Volta para Casa e Lei Orgânica da Assistência Social, residências terapêuticas). "Falta transparência, pois não se sabe se houve desperdício, se os recursos poderiam ter sido melhor aproveitados, qual a capacidade dos servidores desses CAPS", argumenta Gentil.

Ou seja, um esforço técnico e político que começaria pela auditoria dos gastos atuais para saber o que funciona e o que não funciona. "Pelos dados oficiais, sabemos que o dinheiro foi tirado das internações hospitalares mas não sabemos exatamente onde a verba foi parar. São 25 anos de experiência acumulada que permitirá à população avaliar o que é bom ou ruim", enfatiza Gentil.

Segundo o deputado Germano Bonow, dessa vez os psiquiatras devem ser chamados para opinar. "A reforma psiquiátrica no Brasil foi feita sem a participação dos psiquiatras, que de certa forma também se omitiram em mostrar mais enfaticamente a existência de um problema mais amplo e complexo do que está sendo tratado", sublinha o parlamentar.

(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 8)(Liliana Lavoratti)