Título: Até onde a patente deve proteger a inovação?
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/08/2008, Opinião, p. A11

No mundo da inovação, é crescente a importância da propriedade intelectual (PI) e das instituições responsáveis pela regulação e proteção dos chamados ativos intangíveis. Neste campo, o Brasil defronta-se com um grande desafio: proteger a propriedade dos ativos do Século XXI sem ter ainda equacionado completamente os direitos de propriedade sobre a terra.

A propriedade industrial sempre foi objeto de divergências e no mundo pós-Trips (Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) transformou-se em um campo minado de disputas políticas, econômicas e judiciais. Ao mesmo tempo em que os detentores de ativos de propriedade industrial procuram reforçar os mecanismos jurídicos de proteção, a própria inovação tecnológica questiona a eficácia e facilita as transgressões. Observam-se distorções na aplicação da proteção, desde a negação de liberação da informação relevante sobre a patente - base da concessão do monopólio de exploração do bem protegido -, o abuso do poder de mercado e a extensão, por vários artifícios, da vida da patente. No campo farmacêutico, é legítima a preocupação em relação aos efeitos das patentes sobre o acesso a medicamentos essenciais para a saúde pública, mas negar proteção não parece ser a solução para polêmicas e dilemas neste campo.

Marcos Oliveira, vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina (Abifina), em artigo publicado no jornal "O Estado de São Paulo" em 18/06/2008, constata, corretamente, que "a ambição não conhece limites" e que "os detentores de patentes vêm (...) desenvolvendo estratégias para prorrogar o tempo de exclusividade de mercado por meio da obtenção de múltiplas patentes sobre diferentes atributos de um mesmo produto". E concluiu, a nosso ver de maneira precipitada, que a "decisão do INPI [Instituto Nacional de Propriedade Industrial] de rever suas diretrizes de exame de patentes para reconhecer a patenteabilidade de novas formas cristalinas de substâncias antigas, já em domínio público ou não, anda na contramão da política de desenvolvimento (...)".

A concorrência, que move o processo de inovação, não se resume ao lançamento de produtos radicalmente novos. Ao contrário, em muitos setores é a inovação de natureza incremental que mantém o drive inovador e que, devidamente protegida, cria os ativos intangíveis que permitem às empresas participarem das redes globais de inovação. Com a crescente fragmentação do processo de inovação, nem as grandes empresas dominam todas as competências necessárias para inovar e muito menos detém a propriedade industrial de todos os componentes integrantes da inovação: precisam recorrer a competências externas e a patentes de terceiros.

Longe de restringir o acesso à tecnologia, as licenças cruzadas ganham importância como mecanismos positivos de difusão tecnológica, e por isso as patentes de inovação incremental, ou "dependentes", devem ser objeto de concessão cuidadosa, de modo a garantir a segurança jurídica, minimizar conflitos e ampliar a eficiência econômica do sistema de proteção da propriedade industrial.

Neste contexto, controlar "pedaços" de produtos ou processos, ainda que pequenos, atribui às patentes uma função estratégica de integração a uma rede de inovação que é relativamente nova. E abre uma nova perspectiva para países como o Brasil, cujas instituições de pesquisa e empresas dificilmente têm condições para competir com as companhias globais no desenvolvimento integral de inovações radicais. Podem, sim, participar como parceiros de processos de inovação, desde que detenham pelo menos algum ativo estratégico para apresentar na mesa de negociação, dentre os quais os mais importantes são a propriedade intelectual sobre componentes do produto e/ou processo e a capacidade institucional e recursos humanos para inovar. Estas são as chaves para que o Brasil, por meio de suas empresas e instituições, participe do jogo global da inovação. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) vem trilhando, com sucesso, esse caminho.

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O assunto dos polimorfos requer cuidadoso exame técnico para impedir a aprovação de mera maquiagem sem valor inventivo e esforço novo de pesquisa e desenvolvimento.

Recentemente, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial reviu suas diretrizes de exame sobre a matéria aparentemente com essa intenção, e recusou todos os pedidos de proteção patentária a polimorfos de substâncias conhecidas. É possível e desejável aperfeiçoar as diretrizes técnicas que pautam a ação do Instituto Nacional de Propriedade Industrial - sempre no sentido de garantir proteção ao que é resultado de genuíno esforço de inovação -, mas não cabe ao Instituto interpretar e muito menos flexibilizar a aplicação da lei no sentido de atender interesses conflitantes na sociedade. A pergunta subjacente é se interessa ou não ao Brasil construir um regime de propriedade industrial pautado no interesse maior da sociedade e que dê segurança jurídica aos investimentos e reduza os custos e conflitos desta natureza.

A indústria farmacêutica brasileira encontra-se em uma nova encruzilhada. Pode se estagnar na produção de genéricos ou, a partir desta base, reforçar sua capacidade inovadora, ampliar o âmbito de atuação e agregar valor privado e social aos seus produtos.

Restringir a concessão de patentes a inovações incrementais e proteger apenas a inovação radical aponta para a reconstrução da indústria baseada na cópia, e na prática restringe o principal espaço de articulação global do setor farmacêutico.

Melhor que afrouxar a proteção seria fomentar investimentos e a inovação incremental que produz associações e inserção global, especialmente no campo das chamadas doenças negligenciadas. Mas empresas privadas, brasileiras ou estrangeiras, só participarão deste esforço se houver segurança na proteção da propriedade industrial gerada a cada passo, como ocorre em qualquer segmento dinâmico da economia global.

Antônio Márcio Buainain é professor assistente doutor do Instituto de Economia da Unicamp.