Título: Rio teme poder político das milícias
Autor: Santos, Chico
Fonte: Valor Econômico, 04/06/2008, Política, p. A8

A prisão e tortura por mais de sete horas de uma equipe de reportagem - repórter, fotógrafo e motorista - do jornal carioca "O Dia" pela milícia (espécie de poder paralelo paramilitar) que controla a favela Batan no subúrbio de Realengo (zona oeste do Rio) avivou o debate sobre essa forma organização criminosa e sobre os mecanismos para combatê-la. O fato aconteceu dia 14 de maio, só foi tornado público dia 31, mas até ontem não havia culpados na prisão. Enraizadas nas forças policiais e até no Poder Legislativo, as milícias expulsam os traficantes de drogas das comunidades pobres e, na ausência do poder público, passam a ditar ordens, cobrando pedágios e controlando o comércio de bens essenciais, como o gás de cozinha.

"O tráfico de drogas armado detém o poder (em favelas) há mais de 20 anos. Apesar dos esforços, até hoje não conseguiu fazer um parlamentar, mas dizem que há pelo menos três vereadores (da capital) e dois deputados estaduais ligados às milícias. É um fenômeno muito preocupante", pondera o sociólogo José Augusto Rodrigues, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de janeiro (Uerj).

Dois vereadores do Rio, Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras (DEM) e Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho (PMDB) estão formalmente acusados de pertencerem a milícias, assim como o deputado estadual Natalino José Guimarães (PMDB), o Batman, irmão de Nadinho. O vereador Jerominho está preso. O próprio secretário de Segurança Pública do Estado, Mariano Beltrame, admite que as milícias já controlaram 122 comunidades pobres no Estado e que agora ainda controlam "menos de 100".

"Esse fenômeno não tem a novidade que atribuem a ele. Com outros nomes, como Esquadrão da Morte e Polícia Mineira, o fato de determinados grupos se organizarem para impor sua ordem não é novo entre nós. Talvez o novo seja a velocidade com que esses grupos estão se expandindo", analisa Rodrigues.

O antropólogo Fábio Reis Mota, do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (Nufep) da Universidade Federal Fluminense (UFF) vai mais longe. Segundo ele, "a relação tênue entre o público e o privado" existente no Brasil e que estaria na raiz da formação das milícias cariocas já se manifestava no Império, quando os policiais executavam os castigos corporais nos escravos, uma tarefa privativa dos donos desses escravos. "É a venda da mercadoria segurança", resume.

Essa palavra "venda" é, na visão de Rodrigues, da Uerj, a chave do problema. "Acima de tudo, as milícias são um fenômeno econômico", analisa. Elas propiciam o salário paralelo dos milicianos, por meio das taxas extorquidas dos moradores, além de possibilitar o monopólio de serviços básicos, como o comércio de botijões de gás, e a outros não tão básicos, mas inclusivos, obtidos ilegalmente, como o clássico "netgato" (TV a cabo pirateada). "É uma atividade altamente lucrativa que vale o risco de vida", resume.

Para o sociólogo, o problema miliciano ficou tão grave que a solução é "chamar Eliot Ness", referência ao célebre delegado federal americano do seriado "Os Intocáveis" usada por Rodrigues para dizer que é preciso colocar a Polícia Federal no combate a ele. No domingo passado, no auge da revelação da tortura aos jornalistas, o Ministério da Justiça ofereceu os serviços da PF, mas o governo do Estado recusou.

Tanto Rodrigues como Mota, da UFF concordam que trazer para o debate das eleições municipais a possibilidade de municipalização da segurança pública, como ocorre nos Estados Unidos, é uma idéia positiva, na medida que o poder local, teoricamente, está mais apto a definir suas prioridades nessa área.

O sociólogo da Uerj também defende a profissionalização das corregedorias de polícia, que, também como nos Estados Unidos e em outros países, teriam efetivos exclusivos de "polícia da polícia". Rodrigues acha que o mesmo policial fazendo os dois serviços, em momentos diferentes, não funciona. "Imagine o que é você estar em um tiroteio e saber que a pessoa que está cobrindo sua retaguarda é alguém a quem você investigou e para quem, de alguma forma, gerou problemas", exemplifica.

O secretário do Gabinete Civil e um dos principais formuladores da política de segurança do atual governo do Rio, Régis Fichtner, disse que a solução do governado Sérgio Cabral Filho (PMDB) foi colocar como corregedor das polícias do Estado um desembargador aposentado, sem nenhuma relação direta com as forças policiais. Segundo Fichtner, que se desincompatibilizou ontem para ser o vice do petista Alexandre Molon na chapa à Prefeitura do Rio, foi também quebrado neste governo uma regra que impedia a Corregedoria de investigar os crimes mais graves de policiais militares.

Fichtner disse que o governo do Rio não está distinguindo entre as milícias e o tráfico. "Estamos fazendo operações dos dois lados. São todos criminosos". Ele destaca a prisão do vereador Jerominho como atestado do esforço que vem sendo feito. O secretário, que deve concorrer a vice-prefeito da capital na chapa encabeçada pelo PT (Alexandre Molon), justifica o crescimento vertiginoso das milícias à tranqüilidade que elas tiveram no passado para atuar. "Há muitos anos neste Estado não se combatia esse tipo de crime. Eles (os milicianos) estavam até virando heróis".