Título: O credor do sócio e o novo Código Civil
Autor: Serur , Eduardo Montenegro
Fonte: Valor Econômico, 16/05/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Não bastasse o mérito que teve por renovar alguns importantes institutos do direito e introduzir novas previsões legais, o Código Civil atual também se revelou o fio condutor para restabelecer no meio jurídico algo que há muito se apresentava bolorento e cansativo: o debate doutrinário.

De fato, a despeito dos seus defeitos - inerentes, diga-se, a qualquer processo de codificação e a qualquer confecção humana - o novo Código Civil transformou o relativo marasmo doutrinário em um ambiente fértil em discussões sobre alguns velhos institutos e outros nem tanto. Em defesa dos juristas, contudo, é justo dizer que o tal marasmo se devia, em grande medida, à consolidação de conceitos promovida pela antiguidade do Código Civil de 1916, ele próprio palco para calorosas polêmicas e profundos embates jurídicos após sua edição.

Pois bem, aproveitando este saudável ambiente, parece oportuna a discussão acerca do que dispõe o novo Código Civil sobre o credor particular do sócio da sociedade simples. Em seu artigo 1.026, o código confere àquele tipo de credor a prerrogativa de requerer a liquidação da quota do sócio-devedor e ter o respectivo valor depositado em até 90 dias, em dinheiro, perante o juízo da execução, tudo isto diante da insuficiência de outros bens que garantam a quitação da obrigação exeqüenda.

Há que se bem perceber a mecânica fixada pela nova norma: quando o sócio da pessoa jurídica contrair uma dívida e não tiver outros bens para pagá-la, sua participação na sociedade servirá para saldar seu débito perante o credor. Ou seja, caberá à pessoa jurídica apurar o valor da participação do sócio-devedor com base nos critérios fixados no contrato social e convertê-la em dinheiro, o que não se confunde com simplesmente verter em favor do credor os eventuais lucros que caberiam ao sócio-devedor, hipótese ventilada pela norma e de há muito consolidada pela prática jurisprudencial.

Olhando este dispositivo somente sob a ótica do credor, a reação não será outra senão de aplausos, porque se lhe conferiu ferramenta adicional na perseguição do seu crédito, que de tão especial, ver-se-á, atinge a esfera jurídica patrimonial de um terceiro estranho à relação obrigacional original.

Sob a perspectiva das recentes alterações na legislação processual, é igualmente louvável a regra contida no artigo 1.026, que busca assegurar, por mais um meio, a pretensão do credor no processo de execução. Todas estas recentes modificações na sistemática processual das execuções visaram exatamente a isto: acelerar a prestação jurisdicional e permitir ao credor ver satisfeito o seu crédito, evitando que manobras do devedor arrastem o processo de execução nas prateleiras do Poder Judiciário.

-------------------------------------------------------------------------------- Sob a perspectiva das recentes alterações na lei processual, é louvável a regra contida no artigo 1.026 do Código Civil --------------------------------------------------------------------------------

Contudo, a iniciativa legislativa do artigo 1.026 deve ser vista com alguma reserva se analisada sob o enfoque do direito de empresa. Em primeiro lugar, esclareça-se que a nova regra não atinge somente as sociedades simples, menos recorrentes na atividade empresária, o que poderia ser invocado em sua defesa. Em absoluto. Ela se aplicará também às limitadas que forem regidas supletivamente pelas normas das simples, por força do que dispõe o caput do artigo 1.053 do mesmo Código Civil. Então, vê-se que a abrangência do artigo 1.026 é bem maior do que se poderia supor.

Em segundo lugar, a satisfação do credor pelo novo mecanismo transcende a esfera jurídica patrimonial do devedor, como se antes anunciou. Apesar de a regra prever a liquidação da participação que cabe ao sócio-devedor na sociedade, o fato concreto é que a sociedade, em última instância, é quem estará obrigada ao pagamento do respectivo valor diante do juízo da execução.

Na verdade, a regra do artigo 1.026 cria, em face da pessoa jurídica, uma dupla obrigação: a de apurar o valor da participação do sócio-devedor e a de realizar o pagamento, em dinheiro, em até 90 dias. Não se trata de algo que se restrinja à esfera pessoal do sócio. A resolução parcial da sociedade - que, de fato, é o fenômeno previsto no artigo 1.026 - afeta a estrutura de capital e de negócios da própria empresa ao reduzir-lhe patrimônio e capacidade de crescimento, tudo isto sem qualquer planejamento ou conhecimento prévios e à revelia de um projeto empresarial amadurecido no corpo interno da sociedade.

Perceba-se o quão danosa pode ser a nova medida: em determinadas sociedades, sobretudo nas de menor porte, a imposição da resolução parcial pode até inviabilizar a continuidade da atividade empresária, caso o pagamento a ser feito ao credor do sócio exija a desmobilização de ativos essenciais ao andamento dos negócios. Em outras palavras, impôs-se à pessoa jurídica um ônus excessivo por algo a que não deu causa, algo estranho aos seus negócios, algo que não poderia ter evitado e em relação ao qual nada poderia ter feito, porque se originou de uma relação privada entre um de seus sócios e um terceiro.

A premissa oculta no raciocínio do legislador certamente foi a suficiência econômica da sociedade diante do credor, mas isto não pode ser tomado como algo absoluto, sobretudo diante da constatação de que grande parte das pequenas e médias empresas brasileiras sofre problemas de liquidez. Daí porque a indagação é pertinente: é equilibrada uma tal prerrogativa ao credor particular de um sócio diante do possível comprometimento da atividade empresarial, em um momento em que o direito comercial põe em destaque o princípio da preservação da empresa?

Postas as coisas desta maneira, pode-se dizer que aos sócios da sociedade simples resta tão-só fiscalizar uns aos outros em relação aos atos de suas vidas privadas, avaliando permanentemente o grau de risco a que estão submetidos, porque o legislador lhes destinou uma regra que cria um ambiente intra-societário de necessária suspeita.

Por fim, aos sócios das limitadas que desejam fugir da incidência do artigo 1.026 cabe adotar a regência supletiva de seu contrato social pela Lei das Sociedades Anônimas, tendo em vista que aquele dispositivo está voltado às sociedades simples e às limitadas regidas supletivamente por suas regras, não se cogitando que os credores pessoais dos acionistas das sociedades anônimas e dos quotistas das limitadas cuja regência supletiva seja feita pela Lei das S.A. estejam contemplados na hipótese da norma.

Eduardo Montenegro Serur é advogado, sócio do escritório Serur & Neuenschwander Advogados e professor de direito de empresa da pós-graduação em direito da Universidade Federal de Pernambuco

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações