Título: A agenda micro avança
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 07/01/2005, Opinião, p. A9

Muita gente já estava festejando o Ano Novo, ou na estrada, de férias. Mas para quem prestou atenção à agenda microinstitucional do governo, divulgada em 29/12, foi um bom presente de fim de ano. O documento analisa as reformas dos últimos anos, e o que se pretende fazer à frente, ainda que, infelizmente, detalhando mais o passado do que o futuro. A ênfase recai sobre as melhorias no ambiente de negócios, e seus impactos sobre os custos de transação, a eficiência e o investimento no país. Duas características importantes dessas reformas ficam evidentes. Primeiro, o processo de reforma microinstitucional é longo e detalhista, envolvendo sem-número de mudanças na legislação e na forma de operar das organizações. Ele já se estende por mais de 20 anos, desde o Programa de Desburocratização de Hélio Beltrão, lançado em 1979, passando pelo Programa Federal de Desregulamentação (1990-92) e pelas várias reformas dos anos 90. E, pelas propostas elencadas no documento, não há prazo para ser concluído. A extensão e a complexidade desse processo ilustram o grau de detalhe com que o Estado chegou a regular a atividade econômica no Brasil. Mas também refletem as muitas mudanças pelas quais o país passou nas últimas décadas, começando por processos intensos de urbanização e industrialização, passando pela democratização e, mais recentemente, a estabilização macroeconômica e a transferência, para o mercado, do comando de muitas atividades antes realizadas ou coordenadas pelo setor público. Segundo, ainda que baseada em princípios gerais, em tese válidos para qualquer país, a implementação das reformas microinstitucionais é algo essencialmente nacional, dado o caráter também único das instituições, fruto da história, da cultura e do jogo de interesses de cada país. Essa é uma diferença em relação às reformas macroeconômicas e estruturais, que ajuda a explicar porque elas tendem a ser mais demoradas. Outra diferença é o impacto mais diluído no tempo dessas reformas, inclusive pela forma espaçada com que são implementadas. O texto identifica cinco áreas críticas para o crescimento de longo prazo: mercado de crédito, segurança jurídica, regulação corporativa, infra-estrutura e tributação. O documento detalha o que vem sendo feito em relação aos dois primeiros temas, tratando os outros três mais resumidamente. Isso reflete o avanço relativo em cada área nos últimos anos. Desde 1999 se enfatiza a expansão do crédito como uma alavanca do crescimento. O foco tem recaído sobre a expansão do crédito pelo e para o setor privado, em contraposição ao controle da intermediação financeira pelo Estado. Importantes avanços recentes nessa área incluem o bem-sucedido crédito consignado em folha e a nova Lei de Falências.

O ajuste macroeconômico é essencial para que as reformas micro funcionem, e não se consolidará sem maior redução da dívida pública

A reforma do Judiciário foi discutida no Congresso por quase 13 anos, mas apenas nos dois últimos o Executivo se envolveu mais firmemente na sua aprovação, ocorrida em novembro passado. A reforma mudará a forma de a Justiça operar, tornando-a mais ágil e previsível, destacando-se nesse sentido a melhora que será obtida com a súmula vinculante. O governo já enviou para o Congresso outras propostas importantes, com destaque para a simplificação dos códigos de processo, e vem tentando melhorar a gestão da Justiça, outro campo promissor em termos de redução da morosidade. A qualidade da regulação corporativa tem recebido atenção crescente, enquanto determinante do desenvolvimento econômico. Em geral, o Brasil ocupa posição intermediária nas comparações internacionais sobre essa questão, mostrando que nossa situação não é crítica, mas que, por outro lado, temos muito espaço para melhorar. Este governo tem se dedicado mais a esse tema, e o texto do Ministério da Fazenda reflete isso. Três áreas promissoras de reforma são aí tratadas: desburocratização do controle público sobre as empresas, redução da burocracia incidente sobre as exportações e reestruturação do Sistema Brasileiro da Defesa da Concorrência. Exceto pelo primeiro, porém, há poucas indicações de qual será a agenda de trabalho futuro em cada um desses temas. O mesmo ocorre em relação à infra-estrutura. O documento realça a importância de se criar um "ambiente favorável e seguro para que a iniciativa privada realize os investimentos necessários" nessa área, mas não dá indicações suficientes de como se pretende viabilizar isso. Ao contrário, o texto enfatiza a perspectiva de se elevar o gasto público nesse setor, a partir do aumento da poupança pública, das mudanças nas regras contábeis do FMI e da aprovação das PPPs. De fato, o debate público recente sugere que se poderá recorrer à saída aparentemente mais fácil da gradativa reestatização da infra-estrutura, pela via do investimento, em lugar de se brigar pelo fortalecimento da regulação do setor, mesmo que se tenha de abrir mão de ajuste fiscal mais rápido e significativo. Será uma pena se isso ocorrer. Como o próprio documento deixa claro, o ajuste macroeconômico é essencial para que as reformas micro funcionem, e o ajuste não se consolidará sem maior redução da dívida pública. Sem avançar mais significativamente no ajuste fiscal, fica mais difícil reduzir a elevada carga tributária, para a qual o documento traz meta ainda tímida: manter a carga tributária em 2005 no pico da série histórica, observado em 2002, quando houve uma arrecadação extraordinária de 1% do PIB. Para que a carga de tributos não aumente ainda mais, está se desonerando uma série de setores, com foco no investimento e na poupança de longo prazo. Por outro lado, foram aumentados os impostos em várias outras áreas. Essa hiperatividade tributária gera volatilidade, tornando o ambiente de negócios menos favorável ao investimento e ao aumento da produtividade. Uma reforma tributária mais ampla, adotada toda de uma vez e anunciada com maior antecedência, poderia ser uma melhor alternativa. Um dos méritos do documento é convidar a sociedade ao debate sobre questões cuja definição irá refletir tanto aspectos técnicos como o jogo político. Quanto mais amplo e transparente for o debate, maior a chance de o interesse público prevalecer.