Título: Ásia sofre com a falta de mão-de-obra
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Fonte: Valor Econômico, 29/08/2007, Especial, p. A16

Parece estranho. Na região mais populosa do mundo, o maior problema com que se defrontam os empregadores é a escassez de gente para trabalhar. Na Ásia vive mais de metade dos habitantes no planeta e o continente abriga muitas das economias em mais rápido crescimento no mundo. Mas algumas empresas estão sendo obrigadas a reconsiderar a velocidade com que serão capazes de crescer, porque não encontram gente com a capacitação de que necessitam.

Em recente pesquisa, 600 CEOs de multinacionais com empresas operando em toda a Ásia disseram que a escassez de mão-de-obra especializada é sua maior preocupação na China e no Sudeste Asiático. Essa é sua segunda maior dor de cabeça no Japão (depois de diferenças culturais) e quarta maior dificuldade na Índia (depois de os problemas de infra-estrutura, burocracia e da inflação salarial). O mesmo cenário se apresenta para praticamente todos os setores da economia.

Para quem conhece a Ásia há tempo, é fácil compreender as razões das preocupações. O rápido crescimento econômico da região capturou o contingente de talento disponível, diriam os conhecedores. Mas há também deficiências de formação educacional. O recente crescimento em muitas regiões da Ásia tem sido tão grande que modificou rapidamente o tipo de competências de que necessitam as empresas. As escolas e universidades não têm conseguido acompanhar as transformações.

Isso é particularmente verdadeiro no caso de profissões técnicas. As companhias aéreas são um exemplo. Com a crescente desregulamentação, muitas novas aerolinhas estão sendo constituídas, e as companhias estão oferecendo mais serviços para atender a demanda. Mas há uma terrível escassez de pilotos. Segundo a Alteon Training, a subsidiária comercial da Boeing dedicada ao treinamento de pilotos, a Índia tem hoje menos de 3 mil pilotos, mas necessitará mais de 12 mil em torno de 2025. A China precisará de, em média, 2,2 mil novos pilotos por ano, o que dará mais de 40 mil pilotos em torno de 2025. Assim, enquanto as grandes companhias aéreas internacionais conseguem treinar apenas algumas centenas de pilotos por ano, as companhias aéreas asiáticas começaram a "pilhá-las", atraindo pilotos umas das outras. A Philippine Airlines, por exemplo, perdeu 75 pilotos para empresas aéreas estrangeiras nos últimos três anos. A China tenta atrair pilotos do Brasil, entre outros países.

Problemas similares estão infernizando o meio advocatício, que está sentindo uma grave escassez de advogados e juízes. Isso pode provocar um grande acúmulo de casos atrasados e outras complicações no que são, por vezes, sistemas legais rudimentares. Isso pode prejudicar o mundo dos negócios, por exemplo, no que diz respeito à propriedade intelectual ou a soluções para disputas contratuais. Segundo a All-China Lawyers Association, o país tem apenas 122 mil advogados. A Califórnia tem 70 mil advogados a mais do que a China inteira, embora sua população seja de apenas 37 milhões (contra 1,3 bilhão na China). O Brasil tem cerca de 450 mil advogados no total. Muitos empresários poderiam argumentar que há um número excessivo de advogados na Califórnia, mas há regiões da China sem nenhum advogado.

Um relatório apresentado em março ao Congresso do Partido Comunista Chinês pela Sociedade Jiu San, que congrega intelectuais chineses progressistas, enfatizou a carência de médicos. Há apenas 4 mil clínicos gerais na China. Mas, para que o governo concretize sua ambição de criar hospitais comunitários para os 500 milhões de residentes urbanos no país, a China necessitará 160 mil médicos para fazer esses hospitais funcionarem. Há, também, um enorme déficit de pessoal de enfermagem.

A escassez de contadores já está produzindo um impacto regional. Para lançar ações em Hong Kong ou Xangai, muitas companhias chinesas estão atarefadas na preparação de balanços e estatutos sociais internacionalmente reconhecidos. Como os contadores formados na era comunista não dominam conceitos capitalistas, como lucros ou ativos, outros contadores estão sendo atraídos para a China Continental, provenientes de Hong Kong e do restante da região. Um administrador de uma das grandes firmas de auditoria chegou recentemente a Hong Kong após um longo período na Rússia, deu uma olhadela nos ambiciosos planos de crescimento de sua firma e perguntou: "Como faremos tudo isso sem pessoal suficiente?"

Capacitação técnica, especialmente em tecnologia da informação (TI), é inexistente em muitas partes, até mesmo na Índia. Uma das principais preocupações é de que não existam suficientes diplomados com capacitação suficiente para preencher todas as vagas que vêm sendo criadas em um setor vibrante. A Nasscom, que representa as empresas de software da Índia, estimou que poderá ocorrer uma escassez de 500 mil profissionais de TI em torno de 2010. Isso implica que as companhias que recrutam pessoal em feiras de empregos na Índia estão tendo de fazer propostas elevadas para capturar os estudantes mais promissores. Até mesmo um engenheiro de software júnior tem a perspectiva de faturar US$ 45 mil por ano.

Há também severa escassez de bons administradores. Um estudo do McKinsey Global Institute prevê que 75 mil líderes empresariais serão necessários na China nos próximos dez anos. O número atual é estimado em apenas 3 mil a 5 mil. E essa avaliação poderá revelar-se otimista. O estudo, que cobriu um amplo espectro de empresas e consultou mais de 80 gerentes de recursos humanos, descobriu que, "em média, menos de apenas 10% dos candidatos chineses a empregos seriam adequados para trabalhar numa companhia estrangeira". No setor de engenharia, graduados são criticados por ter muita teoria e pouca prática. O estudo concluiu que o contingente de talento em engenharia disponível na China não é maior do que o existente no Reino Unido, que hoje tem uma economia fundada predominantemente em serviços.

E a China tem sido alvo de uma evasão de cérebros. Nos últimos anos, os chineses começaram a ter condições de viajar mais livremente ao exterior para estudar e aperfeiçoar-se. Porém muitos não retornam. Recente relatório da Academia Chinesa de Ciências Sociais (ACCS) descobriu que entre 1978 e 2006, pouco mais de 1 milhão de chineses foi estudar no exterior e cerca de 70% deles não retornaram. Os mais brilhantes são freqüentemente tentados a permanecer no exterior, pois a competição por empregos é mundial.

A escassez de capacitação manifesta-se de duas formas: maior rotatividade de pessoal e crescentes custos com salários. Os níveis de remuneração de pessoal de primeiro escalão em muitas regiões da Ásia já superam os de funções equivalentes em grande parte da Europa. A remuneração atual de um diretor de recursos humanos trabalhando numa multinacional de porte médio a grande em Xangai está atualmente em US$ 250 mil por ano, e isso é para "alguém que provavelmente nunca sequer viveu fora da China", diz Vanessa Moriel, sócio-gerente da Human Capital Partners, uma consultoria em Xangai. O CEO de uma empresa internacional na Índia tem a perspectiva de receber de US$ 400 mil a US$ 500 mil, havendo muitos que ganham bem acima dos US$ 750 mil, segundo a consultoria Korn/Ferry. Para um diretor financeiro, a remuneração média é hoje de US$ 194 mil na China, US$ 159 mil na Tailândia, US$ 157 mil na Malásia e US$ 73 mil na Índia. Os salários de pessoal em níveis mais baixos também estão crescendo rapidamente, tendo subido no ano passado 14% na Indonésia, 11% na Índia e 8% na China - acima da inflação em cada um dos países.

Elevada rotatividade de pessoal contribui para altas nos custos salariais, e as taxas de rotatividade podem passar de 30% ao ano em alguns lugares na Ásia. A Fiducia, consultoria de Hong Kong, calcula que os custos adicionais de contratação e treinamento para operar na Ásia acrescentam 15% aos custos básicos para empregar alguém. No escalão gerencial médio, o período típico de permanência de um empregado em Xangai é de apenas 1,8 ano. Alguns candidatos são apelidados de "saltadores" devido a sua tendência a mudar de emprego a cada dois anos.

Os problemas devidos à alta rotatividade de pessoal são ainda mais graves quando se considera que muitas empresas estão também tentando expandir. No ano passado, a Flextronics, grande fabricante de eletrônicos, quis ampliar seu quadro de pessoal em Xenzhen de 27 mil para 43 mil funcionários. Mas, para conseguir um aumento líquido de 16 mil pessoas, teve de contratar mais de 20 mil, porque no mesmo período 4 mil de seus funcionários saíram.

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Além da excessiva inflação salarial, há também "inflação de cargos" e "inflação de responsabilidades". Gerentes locais relativamente inexperientes muitas vezes recebem títulos cada vez mais pomposos, para embaraço de seus colegas europeus e americanos, por verem-se eventualmente lado a lado com colegas menos capacitados em cargos de "vice-presidente executivo sênior" ou "chairman regional". Mas essas "´honrarias" são concedidas por uma razão: muitos empregadores na Ásia descobriram que atribuir novos títulos a funcionários a cada, digamos, 18 meses, pode ser uma boa maneira de mantê-los em seus quadros.

Atribuir maior responsabilidade a uma equipe de funcionários é mais problemático. Apesar disso, muitos gerentes inexperientes, na China, estão recebendo poderosas funções regionais ou têm sido promovidos a posições para as quais não dispõem de suficiente conhecimento ou capacitação. Apesar de não parecerem preparados para o cargo, com freqüência, essa é considerada a única maneira de mantê-los na folha de pagamento.

E, como se tudo isso não fosse suficientemente ruim, a escassez de talentos deverá se agravar. O afluxo previsto de investimentos, aliado ao crescimento de companhias locais e às crescente expectativas de investidores estrangeiros implicam mais pressão para encontrar e conservar pessoal.

A demografia também desempenhará um grande papel, especialmente à medida que a população economicamente ativa, tanto na China como no Japão, encolherem ao longo das próximas duas décadas. Isso significa, por exemplo, que a missão já difícil de encontrar engenheiros de software criativos irá tornar-se cada vez mais difícil na Ásia Setentrional, o que, por sua vez, intensificará a demanda por mão-de-obra na Índia e em outros mercados onde não há problemas demográficos.

Mas isso apenas aponta para uma dificuldade ainda maior, que poderá levar uma geração para ser corrigida: o setor educacional. Em grande parte do Sudeste Asiático, a maioria das pessoas permanece na escola somente até a idade de 12 anos. Mais de metade das mulheres na Índia são analfabetas. Quase dois terços das crianças nas escolas primárias públicas indianas não conseguem ler uma história simples. Metade não é capaz de resolver problemas numéricos básicos.

As dificuldades educacionais chinesas são diferentes - e freqüentemente relacionadas à história do país. As universidades foram fechadas durante a Revolução Cultural e pouca gente com boa formação educacional entrou para a força-de-trabalho por mais de uma década. Isso resultou em uma geração perdida de profissionais entre as idades de 50 e 60 anos, exatamente o grupo etário de onde deveriam hoje estar saindo muitos dos líderes empresariais.

Quem era crianças (e normalmente sem irmãos, devido à política chinesa de filho único), depois da Revolução Cultural tem outras coisas com que se preocupar. Seus pais, com freqüência, foram enviados para reeducação no campo e muitos foram criados longe de casa por estranhos. Talvez em reação a essa condição penosa, seus filhos foram criados com relativa indulgência. O que é denominada "síndrome do pequeno imperador" é uma vulnerabilidade peculiar aos meninos. Muitos chineses mais velhos acreditam que falta a essa geração mais jovem, paparicada por avós e pais, uma ética de trabalho. Hoje, tornou-se até mesmo depreciativo comentar que alguém "nasceu na década de 80".

As garotas nascidas depois da Revolução Cultural têm probabilidade muito menor de terem sido mimadas, e por isso alguns empregadores as vêm como bons alvos de contratação. Mas até mesmo a contratação de mulheres está ficando mais difícil. Em Zhuhai, uma indústria estrangeira que contrata pessoal de toda a China diz que também prefere recrutar mulheres. Os gerentes acreditam que as mulheres são, geralmente, mais trabalhadoras e tendem a permanecer mais tempo num mesmo emprego. Mas escolas e universidades perceberam isso e agora fixaram quotas para o número de mulheres que as empresas podem contratar. A companhia diz que, para cada grupo de mulheres que seleciona, agora precisa contratar também determinado número de homens.

Diante de tantos problemas, o que podem fazer os empregadores? A montagem de um corpo de funcionários capacitados tem a ver tanto com a política geral de uma companhia como com suas táticas, diz Michael Bekins, diretor-gerente da Korn/Ferry em Hong Kong. A abordagem estratégica decorre da percepção de que conservar é mais importante do que recrutar, diz.

Bekins considera que todos os administradores na Ásia deveriam ser explicitamente avaliados por sua capacidade de manter uma equipe coesa. Algumas maneiras de fazer isso são mais óbvias do que outras. Pagar salários mais altos a funcionários, diz a maioria dos administradores e especialistas em recrutamento de pessoal, certamente não é o suficiente. A remuneração deve ser vista apenas como parte de um pacote. Retardar um pagamento de bônus em troca de, digamos, um prêmio acumulado ao fim de três anos, pode funcionar bem, mas eleva custos. Oferecer planejamento de carreira, treinamento, roteiros de desenvolvimento pessoal, "mentoring" e os demais itens do "pacote de agrados" a que recorrem os modernos departamentos de RH parecem ser bem apreciados . Mas a administração das expectativas é crítica. Uma companhia no Sudeste Asiático pratica uma política de "boas-vindas aos filhos pródigos", facilitando o retorno de funcionários ao seio da empresa. As grandes firmas de contabilidade têm programas para manter-se em contato com que deixam a empresa.

Alguns empregadores argumentam ser preciso enfocar a família, e não apenas o funcionário. Oferecer apoio à educação de filhos e ajudar famílias a se reestabelecerem em um novo ambiente. Para expatriados, isso é crucial. Segundo um consultor, 85% deles não permanecem na China porque suas famílias não gostam de viver lá. A vida pode ser particularmente difícil em cidades menores, onde há poucos outros estrangeiros, escolas internacionais ou restaurantes decentes e pouca coisa para fazer nos momentos de lazer. Muitos cônjuges queixam-se de sentir-se prisioneiros em suas comunidades cercadas, enquanto suas caras-metades trabalham freneticamente.

Existem também maneiras menos evidentes de manter o quadro de executivos. Uma marca de prestígio pode ser valiosa em mais de um aspecto; os asiáticos parecem seduzidos pela idéia de trabalhar para companhias conhecidas. Ter uma sala bem decorada pode ser de grande ajuda. Também apreciada é a gratuidade na admissão a clubes seletos. Até mesmo a distribuição dos celulares mais charmosos pode fazer maravilhas. E, se uma empresa tem uma cantina, é bom que tenha um bom "chef" em seu comando.

Uma das opções mais criativas para os empregadores é oferecer horas de trabalho flexíveis e períodos sabáticos. Embora incomuns na Ásia, podem ser úteis para funcionários que têm crianças pequenas ou pais idosos para cuidar. Mas, aí, mora algum perigo. É comum, especialmente na China, que funcionários comandem suas próprias firmas em paralelo. Dar a eles mais tempo para desenvolver seus próprios negócios pode não atender a seus melhores interesses. E pode também ser contraproducente em algumas regiões da Ásia onde os funcionários querem um emprego para ganhar dinheiro tão rápido quanto puderem.

A contratação de asiáticos com formação no exterior para trazê-los de volta à China nem sempre dá certo. Com freqüência, eles esperam altíssimos salários. Alguns exigem "pacotes especiais para expatriados" que incluam viagens pagas de volta aos EUA ou à Europa. Os expatriados podem também ter-se desatualizado, devido a mudanças ocorridas em seus países de origem. Mas, a maior dificuldade é o freqüente ressentimento de colegas. Isso é particularmente verdadeiro na China, onde um dos rótulos mais educados para os que retornam é "hai gui" (tartaruga marinha). Uma atitude semelhante por vezes também se manifesta na Índia. Segundo as empresas, as "tartarugas" tendem a se dar melhor no setor financeiro ou em companhias de capital fechado.

Diante de tal descompasso entre oferta e demanda nos mercados de trabalho asiáticos, as companhias precisarão aperfeiçoar suas práticas de contratação e manutenção de bons profissionais. Mas, como algumas empresas sempre serão mais hábeis do que outras, os profissionais continuarão pulando de galho em galho ou sendo "roubados" por concorrentes até que o sistema educacional e cursos de treinamento eliminem o déficit de pessoal. As conseqüências dessa conjuntura são graves. "Isso limitará o crescimento. Necessariamente", diz Bekins, da Korn/Ferry. Tudo isso implica que, sem políticas talentosas de recrutamento, algumas companhias poderão ter de reduzir seus ousados planos de crescimento na Ásia. (Tradução de Sergio Blum)