Título: Como se fossem bichos
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 01/01/2011, Brasil, p. 8

Levantamento do CNJ revela condições gravíssimas nas unidades de internação de 19 estados e do DF. Educação e ressocialização são praticamente inexistentes

Os objetivos pedagógicos da medida socioeducativa, ligados à inclusão e justiça, foram substituídos por tortura, ociosidade e violações de direitos previstos na Constituição ¿ como educação e saúde. A constatação de que o atendimento recebido pela maioria dos 15 mil adolescentes infratores privados de liberdade no Brasil está muito longe do ideário da ressocialização é do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Pela primeira vez, o Judiciário brasileiro se debruçou, com comissões independentes, nas unidades de internação de 19 estados, além do Distrito Federal. Os dados documentados pelos magistrados ao longo de 2010 mostram uma radiografia macabra do sistema socioeducativo. Depois da fiscalização dos juízes, uma unidade de Santa Catarina acabou fechada, há menos de 10 dias. O CNJ recomendou também a interdição do Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje), no DF.

¿Notamos, ao longo de todo esse trabalho, que uma série de falhas tem origem na falta de um projeto socioeducativo nos estados. A ausência dessa política central e planejada leva o setor a não ter orçamento, a não ter corpo técnico, a não ter práticas estabelecidas¿, critica Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, juiz auxiliar do CNJ e um dos coordenadores do projeto, batizado de Programa Medida Justa. Ele informa que as boas experiências verificadas durante as visitas se devem ao empenho pessoal de diretores de unidades preparados e compromissados. ¿Sem um comando centralizado, cada local trabalha de um jeito e as interlocuções necessárias com outras áreas, como secretaria de Educação, Saúde, Assistência Social, ficam prejudicadas¿, diz o magistrado. ¿O lado bom é que percebemos uma conscientização dos gestores da situação e um esforço para melhorar.¿

Alvo de algumas das críticas mais duras do CNJ, o estado de Santa Catarina teve de fechar a unidade Centro Educacional São Lucas, no município de São José, por ordem judicial. Mas há outra, na grande Florianópolis, em condições tão ou mais precárias, cuja interdição o CNJ também pediu. Lá foram encontrados três ganchos presos na parede onde, segundo os adolescentes, os monitores os penduram nus e os agridem. Além das queixas constantes de agressões, os internos relataram que urinam em garrafas pet durante a noite porque não podem sair do alojamento, sem banheiro. Em Chapecó, uma unidade tem os sanitários dentro das celas transformadas em quartos, mas todos estão entupidos, exalando um odor fétido. Dos seis chuveiros, só um funciona.

Sem visitas

¿Não estamos reivindicando um hotel cinco estrelas, como muitos teimam em considerar. O que pedimos são condições mínimas de dignidade para quem cumpre medida socioeducativa", ressalta Carvalho, o juiz do CNJ. Justiniano Pedroso, secretário de Justiça catarinense, reconhece os problemas enfrentados no estado, mas critica parte das reprovações. ¿A Vigilância Sanitária esteve no São Lucas, que foi desativado, e disse que não pode ter vaso dentro das celas. O CNJ reclama porque no Pliat os vasos são fora da cela, então a gente não sabe o que fazer¿, afirma o secretário. Durante a visita, os magistrados verificaram outro fato grave no estado: mais de R$ 10 milhões repassados ao governo pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, ligada à Presidência da República, seriam perdidos, uma vez que o convênio venceria neste mês, sem que nós burocráticos fossem desatados pela administração local. Quanto a esse problema, Justiniano afirma que todos os empecilhos foram resolvidos e que a construção da unidade em Joinville já teve início. Uma outra unidade, de acordo com ele, será implantada na capital.

A concentração de estabelecimentos próximos aos grandes centros, segundo o CNJ, acaba privando o adolescente do contato familiar. Na Bahia, das três unidades existentes, duas estão na capital. O Maranhão só tem um local para internação definitiva, em São Luís, onde 100% dos internos moram em outro município. ¿Obrigar uma mãe a se deslocar mais de mil quilômetros para ver o interno, como ocorre no Amazonas, é dizer que ele não terá visitas¿, afirma Carvalho. Para o magistrado, a arquitetura prisional dos estabelecimentos ¿ que impede a realização de atividades lúdicas, profissionalizantes e até educacionais ¿ é um problema tão grave quanto a falta de pessoal qualificado. O fato se exemplifica nas unidades de Formosa e Jataí, onde há piscinas e quadras poliesportivas, mas falta gente até para fazer a manutenção das instalações.

Ainda no papel

O DF recebeu críticas pesadas do CNJ em função das condições precárias do Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). Ao contrário de boa parte das unidades visitadas pelo país, foi verificada uma superlotação de mais de 100% no Caje. Onde cabem 160 adolescentes há, atualmente, cerca de 350. Com banho de sol de uma hora diária, tendo de colocar colchões no banheiro da cela para dormir e sem acesso à escola, os adolescentes já promoveram inúmeros atos de violência. Foram, segundo o relatório dos magistrados, 21 mortes nos últimos 13 anos dentro do Caje.

De acordo com o secretário de Justiça do DF, Geraldo Martins, há um projeto pronto para a construção de quatro unidades, com terrenos destinados, estudos ambientais feitos e plantas. ¿Basta que se reserve orçamento em 2011 para fazer a licitação¿, diz. A intenção da obra, segundo Martins, é desativar o Caje.