Título: Mais evolução, menos revolução
Autor: Paulo Godoy
Fonte: Valor Econômico, 19/01/2005, Opinião, p. A10

Uma população urbana maior que a de São Paulo não tem água encanada. Trata-se de um universo de aproximadamente 14 milhões de pessoas. Somente esse dado já seria suficiente para caracterizar como alarmante a situação do setor de saneamento no Brasil, mas a carência vai além. Mais da metade dos brasileiros - 52% - vive em casas sem rede de esgoto. Em alguns Estados, esse índice chega a 85%. Os números convergem apenas para um ponto: a urgência em implantar uma política, em forma de lei, que objetive universalizar os serviços de atendimento de água e esgoto no país. A essência do anteprojeto de lei, em elaboração há dois anos pelo governo federal, cujo envio ao Congresso foi adiado novamente, agora para o início de 2005, infelizmente caminha na contramão e vai encontrar dificuldades para resolver os entraves que impedem a expansão do atendimento: não cria condições de financiar a expansão, não indica mecanismos para melhorar a gestão dos serviços e não traz solução adequada para a questão da titularidade. As pedras permanecem no caminho e cada uma merece detalhes. O setor precisa de R$ 10 bilhões anuais, ao longo de 20 anos, para universalizar os serviços de água e esgoto. Estimativas mais otimistas apontam que União, Estados e municípios teriam capacidade de prover, no máximo, até 40% desse montante. A administração pública também está amarrada pelos limites de endividamento impostos pelo Senado e Tesouro Nacional. Se as demandas são enormes e a capacidade do governo em atendê-las é restrita, torna-se urgente a criação de um arcabouço de regras claras e estáveis para atrair a iniciativa privada e convencê-la a financiar boa parte da expansão. O anteprojeto de lei do governo conhecido até então, no entanto, além de desestabilizar o funcionamento da estrutura de empresas estaduais em vigor, não viabiliza a participação de agentes privados. A titularidade tem sido o centro da polêmica desde que houve a primeira tentativa, no Congresso, de criar uma lei para o setor. As regras precisam distinguir claramente interesse comum e local. O interesse comum existe quando o sistema de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto de uma cidade interfere no de outras vizinhas. Interesse local existe quando não há essa interferência e o município possui o ciclo completo para prestar os serviços de água e esgoto. Nesse último caso, a titularidade - o poder concedente - deve ser do município. Quando o interesse é comum, cabe aos Estados o planejamento e a organização desses serviços, definindo as formas de operação e as responsabilidades através de legislação própria, aprovada pelas assembléias legislativas. E, para o bom desempenho e integração das funções comuns, deve haver participação dos municípios atendidos com o Estado na coordenação dessas tarefas e atividades. Este é o caso das regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas. O anteprojeto, em vez de solucionar de forma prática a questão, criava, até a última versão, a figura de consórcios municipais, que teriam independência inclusive em relação ao Estado ao qual pertencem.

O setor de saneamento precisa de R$ 10 bilhões anuais, ao longo de 20 anos, para universalizar serviços de água e esgoto

É difícil imaginar, ainda, como municípios com menos capacidade financeira vão conseguir financiar a expansão dos serviços, principalmente em regiões onde a simples cobrança das tarifas não cobre nem metade dos custos. Por isso, no Brasil, a existência do mecanismo de subsídio cruzado, implementado pelas companhias estaduais, onde cidadãos em cidades mais ricas cobrem parte do custo dos cidadãos de cidades mais pobres, precisa ser levado em consideração, pois é importante meio de sustentação da prestação de serviços hoje. A política nacional de saneamento precisa resultar em um método de cobrança de tarifas onde haja justiça tanto para o usuário, inclusive os mais pobres, quanto para o investidor. A contabilidade dos custos reais dos serviços, geridos sob a égide da eficiência, tanto para água quanto para esgoto, é premente, para evitar erros praticados no passado e para demonstrar à sociedade o quanto a expansão e a gestão requerem. Esse caminho, se adotado, justifica, inclusive, a utilização das parcerias público-privadas (PPPs), lei recentemente sancionada pelo presidente da República, onde não houver retorno ao investimento e o governo não dispuser de recursos fiscais para levar infra-estrutura de água e de esgoto à população. O incentivo à boa gestão é outra aresta que o anteprojeto do governo federal deixa de aparar, pela inexistência de um sistema que se fundamente em metas de desempenho. A política tem de ser imperiosa em atacar esse ponto. Todos os prestadores de serviços, sejam públicos ou não, precisam ter contratos com metas de administração e expansão dos serviços, com cláusulas de penalidades para casos de descumprimento. Para acompanhar e fiscalizar os serviços, e a boa implantação da política do setor, devem ainda ser criadas agências reguladoras autônomas e independentes. As diretrizes apontadas aqui não são nenhum ovo de Colombo e se espelham em outras áreas da infra-estrutura com relativo sucesso na expansão da produção, do atendimento e da qualidade. O setor de saneamento não requer revolução, mas sim evolução. Ao mesmo tempo em que ações estruturantes, de longo prazo, são implementadas, outras, específicas e emergenciais, como a revitalização de várias concessionárias estaduais e municipais, precisam ser encaminhadas para que o quadro, já bastante grave, não piore. O anteprojeto de lei precisa melhorar a gestão das empresas, definir a diferença entre interesse comum e local e ainda criar mecanismos alternativos de financiamento. Há 14 milhões de brasileiros somente nas regiões urbanas à espera de água encanada, 90 milhões sem rede de esgoto e toda uma cadeia produtiva ociosa. O setor já perdeu tempo demais com filosofia de alcova, ideologias ultrapassadas e fórmulas mágicas. É hora de realismo.