Título: Anti-retrovirais inovadores e propriedade intelectual
Autor: Tannus, Gabriel
Fonte: Valor Econômico, 21/05/2007, Opinião, p. A14

Toda a sociedade brasileira vê no Programa Nacional de HIV/Aids um exemplo a ser seguido. Entre as possíveis razões para isso identificamos os seguintes fatores: a) suporte da sociedade e conseqüente vontade política para sua idealização e realização; b) adequada infra-estrutura como hospitais, laboratórios e centros de tratamento; c) corpo clínico especializado e de qualidade; e d) disponibilidade de anti-retrovirais eficientes que permitem aos pacientes manter uma boa qualidade de vida.

A integração de medicamentos anti-retrovirais de 2ª geração ao programa permitiu uma enorme redução na mortalidade (acima de 50%), além de gerar uma significativa economia, ao evitar custos de internação e tratamento de doenças oportunistas. De acordo com trabalho publicado por um ex-diretor do programa, somente no período de 1997 a 2001 (os dados mais recentes disponíveis) houve uma economia de US$ 2 bilhões.

O desenvolvimento e a produção desses novos medicamentos somente foram possíveis graças ao sistema de proteção de propriedade intelectual. Isso dá garantias à empresa inovadora, que assume todos os riscos nos 10 anos necessários para colocar um produto farmacêutico no mercado, a um custo superior a US$ 900 milhões.

Segundo o Ministério da Saúde, a economia anual com a licença compulsória do medicamento efavirenz seria de US$ 30 milhões se comprado de um produtor da Índia. O dado é questionável, pois não leva em conta a última proposta da empresa que, se fosse considerada, reduziria esse valor para US$ 17 milhões/ano, o que representa 0,01% do orçamento anual do ministério. Soma muito pequena para justificar uma ameaça verdadeira à sustentabilidade do programa.

Além da potencial economia, outros aspectos deveriam ter sido considerados nessa decisão, como a qualidade dos medicamentos genéricos e sua disponibilidade. A Fiocruz (Farmanguinhos) recentemente foi vítima de uma armadilha criada por uma licitação pública na qual o vencedor da concorrência (uma empresa chinesa) apresentou o menor preço. O laboratório do governo teve que recorrer à Justiça para ter o direito de comprar por preço maior de um fornecedor nacional. O argumento: o produto era de baixa qualidade.

A descoberta de um medicamento, diferentemente de outros produtos, requer um longo período de estudos para comprovar sua eficácia e segurança. Para isso, cada vez mais as autoridades reguladoras (governo) exigem comprovações que demandam longos e caros estudos. Dados da Tufts University (EUA) demonstram que 2/3 dos gastos para descobrir um medicamento são empregados em estudos clínicos.

-------------------------------------------------------------------------------- Negociação é o melhor caminho para atender aos interesses dos pacientes, da sociedade, do governo e da indústria farmacêutica --------------------------------------------------------------------------------

Estima-se um investimento de US$ 13 bilhões por ano em estudos clínicos no mundo, mas infelizmente o Brasil está longe de aproveitar esse potencial, mesmo tendo as condições básicas para fazê-lo: conhecimento médico, centros de pesquisa e laboratórios de qualidade mundial, comissões de ética, etc. No período de 2001 a 2005 empresas associadas à Interfarma deixaram de investir no Brasil US$ 129 milhões em pesquisa clínica por demora na aprovação dos estudos pelos vários órgãos do governo. Desprezar investimentos em pesquisa clínica é desconhecer a essência do desenvolvimento de medicamentos inovadores, do benefício aos pacientes e do melhor conhecimento científico gerado pelos médicos brasileiros.

É de conhecimento geral que a principal preocupação com o tratamento dos pacientes com HIV/Aids é a resistência apresentada pelo vírus, exigindo substituições de medicamentos para manter a eficácia do tratamento e a qualidade de vida dos pacientes. A atual decisão de estruturar a compra de um dos componentes do coquetel da Índia poderá gerar um problema futuro, pois, por interesse em participar ativamente da OMC, aquele país passou a respeitar patentes de medicamentos a partir de 2005. A conclusão lógica é que a Índia terá que respeitar as patentes dos novos anti-retrovirais. Sem essa "fonte" devemos perguntar: quem suprirá o Brasil desses novos e necessários medicamentos? Tecnologia interna? Praticamente impossível, pois para desenvolver essa base tecnológica inovadora necessitaremos de mais 20 anos. Essa é uma questão para uma profunda reflexão, pois ela impactará a qualidade de vida de muitos brasileiros.

Nas noticias veiculadas pela imprensa, afirma-se que o comportamento dos investidores não seria afetado pela licença compulsória e o exemplo apresentado foi a recente inauguração de uma nova fábrica de insulinas no Brasil. Entre a decisão de construir uma fábrica e sua inauguração transcorrem, no mínimo, três anos. Por essa razão é impossível usar essa recente inauguração como reforço para explicar que a licença compulsória em nada influenciou a decisão tomada. As perguntas no momento são outras: quantas novas fábricas e centros de pesquisas virão? A lógica diz que sem marcos regulatórios estáveis estas serão perguntas sem respostas.

Cabe esclarecer ainda o critério de formação de preços para os anti-retrovirais para os diferentes países. Frente aos problemas dos países africanos, em 2001, a OMS, Unicef, ONU, Unaids e o Banco Mundial, em conjunto com a indústria farmacêutica, estabeleceram a Iniciativa de Acesso Acelerado para aumentar o número de pacientes tratados no mundo, particularmente nos países pobres. Essa iniciativa estabelece os preços para anti-retrovirais levando em conta dois fatores: Índice de Desenvolvimento Humano e incidência da doença na população adulta. Desde então esse critério vem sendo usado pela indústria farmacêutica e não foi estabelecido por esta ou aquela empresa.

A negociação é o melhor caminho para atender aos interesses dos pacientes, da sociedade, do governo e da indústria farmacêutica. A Interfarma, como representante das empresas farmacêuticas que pesquisam drogas inovadoras, que salvam vidas e melhoram o bem-estar dos pacientes, só tem a lamentar a decisão de utilizar a licença compulsória como meio de gerenciar o orçamento. Continuamos dispostos a conversar de maneira produtiva com o governo, para que todo cidadão brasileiro tenha acesso a tratamento para todas as doenças.

Gabriel Tannus é presidente executivo da Interfarma - Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa.