Título: Acionista acidental
Autor: Cotias, Adriana
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2007, EU & Invesimentos, p. D1

"Você que está recebendo essa correspondência tem mais de tres mil reais (sic) para resgatar em ações. Muitas pessoas no Brasil possuem ações e não sabe (sic). Ações de telefones de bancos (sic) e de outras empresas. Nossa empresa executa um trabalho nesse sentido. Descobrindo, regularizando e colocando á (sic!) venda ações para nossos clientes." É nesse português trôpego que ressurge uma figura que parecia extinta no mercado, a do "garimpeiro" de ações. A carta, enviada por um escritório de recuperação de crédito, chegou às mãos do Valor por meio de um investidor, mas esse tipo de conteúdo também vem por e-mail.

Embora a abordagem pareça tentadora para quem não se importar tanto com o assassinato da gramática, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) alerta que, se a iniciativa não partir de uma corretora ou agente autônomo autorizado a negociar valores mobiliários, trata-se de uma atividade irregular e o investidor corre o risco de fazer um mau negócio, como receber menos do que valem as ações.

"Não quer dizer que ele esteja sendo vítima de um golpe, mas se for alguém fora do mercado, sem registro na CVM e atuando como uma espécie de despachante, mesmo que leve o cliente para uma corretora, essa intermediação não é permitida", diz o superintendente de fiscalização da autarquia, Waldir de Jesus Nobre. Se a irregularidade é comprovada após inspeção de técnicos da área, a CVM determina a suspensão das atividades (a chamada "stop order") da empresa, podendo aplicar multa de R$ 500 ao dia (limitada a 60 dias e R$ 70 mil) se a ordem não for acatada.

Bastante populares no período que sucedeu a privatização do sistema Telebrás, as denúncias sobre garimpeiros tornaram-se mais raras, diz Nobre. Mas, há poucos meses, a CVM identificou o caso de uma pessoa que fazia o contato com o investidor por telefone, cuidava de toda a burocracia da abertura de conta numa corretora e depois cobrava por isso. "A gente já viu de tudo: desde aquele que se apropria de parte do valor das ações, pagando menos do que o mercado, gente trabalhando para recomprar ações de empresas que já foram abertas para revender para as próprias companhias, até golpes mesmo, em que, de posse de procuração e documentação falsas, esse intermediário vende as ações do investidor."

Esse universo paralelo surgiu porque até o governo Collor, em 1990, a legislação permitia a emissão de títulos ao portador, sem identificação do comprador. Na hora da venda inicial das ações, as empresas até sabiam quem estava adquirindo os papéis. Mas depois, quando eram revendidos na bolsa, não havia mais como identificar o novo dono, lembra o presidente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), Alfried Plöger. "A sorte é que, antigamente, a pulverização do capital no mercado não era grande, era raro ver uma empresa com uma base de mil acionistas." A exceção eram as companhias de telefonia, que condicionavam a concessão de linhas residenciais ou comerciais à venda de ações emitidas pelas empresas.

Com isso, o sistema Telebrás chegou a ter cerca de 6 milhões de acionistas, reduzidos a 4,3 milhões na fase pré-privatização. Após a venda das teles, as empresas que surgiram diminuíram ainda mais essa conta. Mas, atualmente, a Telebrás, a "casca" que sobrou, ainda tem cerca de 2 milhões de acionistas, com papéis custodiados nos bancos Real, Banco do Brasil (BB) e Itaú. E há outros 600 mil não identificados, diz o presidente e diretor de Relações com Investidores da Telebrás remanescente, Jorge da Motta e Silva. "É uma massa significativa, mas os endereços não batem e os CPFs não são conhecidos."

Ele diz que a empresa não tem o que fazer em relação aos "garimpeiros" e que não é incomum investidor reclamar de vendas irregulares de ações, mas depois de terem assinado procurações transferindo seus direitos a terceiros. Nobre, da CVM, aconselha procurar os bancos custodiantes - Telemar no BB, Embratel no Itaú e as demais no Real - se descobrir que tem papéis do setor de telefonia.

Além das sobras de Telebrás, há uma massa de investidores de outras tantas empresas que ou mudou de endereço ou morreu sem deixar herdeiros, acrescenta Plöger, da Abrasca. Ele estima que pelo menos 1% da base de acionistas das companhias de capital aberto seja de não identificados.

No BB, com 303,1 mil acionistas e 825,3 milhões de ações, há ainda 150 mil papéis ao portador, o equivalente a 0,018% do capital, diz o gerente de relações com investidores, Marco Geovane Tobias. "Os custos são altos porque todas essas ações recebem dividendos, mas, como não têm reclamantes, no prazo de três anos esses direitos prescrevem." Considerando-se os R$ 2,4 bilhões distribuídos pelo BB no ano passado, os acionistas desaparecidos deixaram de sacar R$ 432 mil.

Manter cadastros e sistemas para gerenciar a distribuição de dividendos a investidores desaparecidos representa um grande ônus para as empresas, diz o sócio do Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados Paulo Cezar Aragão, ex-superintendente jurídico da CVM.

Ele cita o caso da Telemar que, no seu frustrado processo de reestruturação societária no ano passado, teve uma dificuldade enorme para convocar para uma assembléia geral cerca de 700 mil investidores. Nas duas primeiras reuniões, em que era necessário ter 50% mais um dos acionistas preferencialistas votando, não houve quórum. No terceiro encontro, em que a regra exigia 25%, a proposta foi, enfim, rejeitada pelos minoritários.

Quando abordado por um garimpeiro, o advogado sugere que o investidor procure a companhia da qual possui ações para calcular se elas têm algum valor. "Em 20 anos foram cortados 21 zeros da moeda, houve dois grupamentos de ações compulsórios e não é incomum ver acionista com apenas duas ou três ações de uma empresa, o que quer dizer que ele vai ter muita dificuldade para vendê-las", diz Aragão.