Título: O futuro Código de Processo Penal
Autor: Maya, André Machado; Abrão, Guilherme Rodrigues
Fonte: Correio Braziliense, 22/11/2010, Opinião, p. 11

Mestres em ciências criminais e sócios-fundadores do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (Ibrapp)

O Senado Federal aprovou, no último dia 9, o projeto do novo Código de Processo Penal (CPP), já equivocadamente batizado por alguns como o ¿código dos réus¿. Na mídia, vários programas já propuseram o debate de referido projeto de lei, inclusive com a realização de pesquisas interativas indagando ao ouvintes, leitores e telespectadores se o novo código é bom ou ruim para a sociedade, como se da sociedade os réus não fizessem parte. É preciso pontuar que o projeto do novo código está inserido numa lógica que segue os ditames constitucionais e, ao menos em parte, em consonância com o respeito aos direitos e as garantias fundamentais que são assegurados a todos os cidadãos.

A tônica dos debates verificados vem se revelando por demais reducionista e simplista. Não há motivos para pânico: o novo (quem sabe?) CPP não foi feito para beneficiar os réus. E uma tal afirmação apenas pode ser resultado do desconhecimento do projeto aprovado no Senado. O teor do projeto revela, entre outros pontos, a ampliação do prazo das interceptações telefônicas para 360 dias (o prazo atual é de 30 dias); a possibilidade de prisão preventiva com base na gravidade do crime (o que hoje é vedado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal); e a possibilidade de aplicação antecipada de pena (punição sem processo), nos casos de crimes cuja pena máxima não supere oito anos, o que representa quase a totalidade dos delitos tipificados no Código Penal. Isso apenas para citar três exemplos que colocam por terra o rótulo reducionista imposto por partidários dos discursos punitivistas e do Direito Penal do inimigo.

Por outro lado, a verdade é que o projeto do novo CPP introduz no ordenamento jurídico brasileiro alterações significativas, todas elas seguindo tendência mundial de democratização do processo penal. E faz isso com objetivo muito claro: legitimar a atuação do Estado na persecução penal e a decisão final do processo, seja ela condenatória, seja ela absolutória. É preciso ter claro que os crimes e as penas são previstas no Código Penal. Cabe ao Código de Processo Penal delimitar os procedimentos e as regras que devem ser observadas para que, no fim, seja imposta ou não a sanção penal.

Assim, atendendo aos parâmetros de uma sociedade democrática, e ciente de que democracia pressupõe liberdade, pressupõe direitos e garantias individuais, é que o projeto do novo código, em nítido alinhamento com a Constituição Federal de 1988, cria, por exemplo, o juiz de garantias. Ao mesmo tempo, proíbe o juiz de produzir provas, com o que pretende reforçar a garantia ¿ que a todos nós alcança ¿ de ser julgado por um juiz imparcial. A produção de provas é responsabilidade de quem acusa, do Ministério Público, instituição muito bem estruturada e composta por profissionais muito bem remunerados e preparados para exercer a função acusatória. É muito cômoda ao Ministério Público a defesa da iniciativa probatória dos juízes, com o que se desincumbe de qualquer responsabilidade no processo. Olvida-se o Ministério Público de que o juiz deve ser um terceiro imparcial. Não é tarefa do juiz acusar, tampouco defender o réu.

Em síntese, a atualização do Código de Processo Penal está atrasada há pelo menos 22 anos. Não é mais possível compatibilizar uma Constituição Federal democrática, que se diz cidadã, com um CPP oriundo do Estado Novo de Getúlio Vargas, impregnado de conceitos fascistas. É preciso entender que a lógica mudou, que o acusado não é o inimigo e que no processo penal é fundamental estabelecer que os fins não justificam os meios, mas sim o inverso. Basta assistir ao filme Tropa de elite 2 para entender a importância de um sistema de garantias que, a um só tempo, limite a atuação punitiva do Estado e legitime a condenação daqueles que cometeram crimes.