Título: Os juros na lei brasileira: usura e limites
Autor: João Luiz Coelho da Rocha
Fonte: Valor Econômico, 06/06/2006, Legislação &, p. E2

De acordo com o conceito jurídico clássico, juros são frutos civis produzidos pelo dinheiro. Em outras palavras, constituem o custo do capital emprestado. Segundo historiadores, existem desde os primeiros registros de civilizações. Na Babilônia de 2000 a.C., por exemplo, eram pagos pelo uso de sementes ou outros bens emprestados.

Na sociedade ocidental, a questão dos juros foi uma das responsáveis pelo marco histórico da reforma, quando os lucros sobre juros auferidos pela burguesia comercial, por volta do século XVI, eram condenados pela Igreja Católica. O protestantismo surge como forma dessa burguesia conciliar suas atividades econômicas com a fé.

No Brasil, temos uma relação cultural um tanto contraditória referente à cobrança de juros. Embora sejamos um país capitalista, a nossa latinidade, de matriz católica e contra-reformista, sempre nutriu uma certa repulsa moral pelos juros, vistos como arma do credor monetário que nada produz e vive à custa do esforço produtivo alheio.

Nesse cenário, vale mapear as questões, no aspecto jurídico, que trazem à tona o debate sobre os juros na lei brasileira. Na história do país referente à política de juros, podemos configurar três personagens centrais: o príncipe (governo), os deuses (instituições financeiras) e os "pobres mortais", que constituem a grande parte da população.

Em 1964, quando o país vivia sob a égide da síndrome inflacionária, o príncipe criou, pela Lei nº 4.595, o Banco Central (Bacen), responsável pela fixação das taxas máximas de juros para instituições financeiras. Neste passo, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou a decisão na Súmula nº 596, excepcionando instituições financeiras, os deuses da economia, dos limites da Lei de Usura - o Decreto nº 22.626 -, existente desde 1933, que proibia a cobrança de taxas de juros superiores a 12% ao ano. A mesma vedara também a prática do anatocismo, também conhecido como os famosos juros sobre juros.

A Medida Provisória nº 1.963-A, publicada em 31 de março de 2000, e revigorada pela Medida Provisória nº 2.170-36, autoriza as instituições financeiras à capitalização de juros em periodicidade inferior à anual em seus empréstimos. Isso significa que os bancos, além de poderem cobrar dos pobres mortais juros sobre juros, ainda o podem fazê-lo em baixa periodicidade, ou seja, em operações mensais, semanais e até, em alguns casos, diária.

O Código Civil permite a capitalização de juros com fins econômicos para empréstimos entre pessoas físicas e jurídicas Nas relações entre os pobres mortais, o Código Civil atual, por meio da Lei nº 10.406, de 2002, permite a capitalização anual de juros no mútuo com fins econômicos - de acordo com o estabelecido em contrato - valendo, pois, para os empréstimos entre empresas (mesmo não bancárias) e entre pessoas físicas. A medida é um avanço, pois até então apenas instituições financeiras poderiam estipular valores superiores a 12% ao ano. De acordo com o artigo 406, os juros moratórios - provenientes do descumprimento de obrigações pactuadas - são fixados pela taxa que estiver em vigor para a mora de pagamento de imposto devidos à Fazenda Nacional. A taxa em vigor hoje é a Selic.

Há quem faça objeções a este parâmetro, alegando que a Selic, além de ser capitalizável mensalmente (e os juros, no caso de empréstimos não bancários não podem ser capitalizados a menos de um ano), é um padrão criado pelo Banco Central, e não por lei. Não há procedência nessas objeções, pois nenhum princípio de direito foi afetado. A lei criadora desse paradigma é o Código Civil e o Bacen só fixa as taxas Selic por delegação própria legal. A capitalização deferida ao mínimo de um ano é a dos juros compensatórios nos mútuos, e nada impede que outra norma do Código Civil (artigo 406) admita uma taxa de mora capitalizável em outros termos. Aliás, mais razoável e compreensível que os juros "penais" - como os de mora - tenham um vetor de capitalização mais pesado.

Alega-se também que a Selic não é juridicamente segura como índice de apuração dos juros legais, pois impede o seu prévio conhecimento. O argumento é inconsistente pois, definida pelo Bacen sempre em função do fluxo inflacionário, a Selic tem tido desde o início variações muito pequenas. Além disso, a correção monetária demanda periodicidade mínima inferior à anual. Assim, no espaço temporal de um ano não haveria reflexos adicionais externos da mora calculada com a taxa Selic.

Em recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o bom direito aponta que a taxa Selic há de ser acolhida como fixação dos juros moratórios, embora não seja acumulável com índices de correção monetária. Desta forma, não haveria a sobreposição de variação inflacionária enquanto o credor escapa da mordaça dos 12% ao ano.

É clara a intenção do legislador em querer que, à falta de outro acerto, os valores de apenamento de juros nos negócios privados sejam dimensionados de igual forma ao que se procede nos débitos ao poder público tributante. Justo e coerente que se utilize essa mesma medida de fração econômica. Afinal, se é boa para satisfazer o príncipe, deve ser aplicável a qualquer credor, sobretudo, a nós, os pobres mortais dessa fábula de juros.

João Luiz Coelho da Rocha é advogado, sócio do escritório Bastos-Tigre, Coelho da Rocha e Lopes Advogados e professor de direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro