Título: Água mole, pedra dura
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Valor Econômico, 07/06/2006, Opinião, p. A13

Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Desde o início dos anos 1990, se repetem afirmativas do tipo: "é necessário flexibilizar os direitos trabalhistas, pois os custos decorrentes oneram o preço do trabalho e, em conseqüência, o custo-Brasil, retirando competitividade à economia". Uma variante do discurso busca desconstruir o padrão de vida de quem se aposenta: neste caso, o discurso denuncia o déficit da Previdência e fala de benefícios excessivos. Em sua versão mais cruel, pretende desvincular as pensões e aposentadorias do salário mínimo real.

É difícil o dia em que algum importante veículo da mídia deixe de abordar um destes temas, bem como é freqüente serem manejados como afirmações tácitas, incontestáveis. A repetição acaba criando um lugar-comum, acrítico.

O direito à propriedade está consagrado desde tempos do Império Romano. Assumiu sua forma moderna quando, a partir do liberalismo da Revolução Francesa, foram varridos os vestígios do feudalismo. O direito ao trabalho não emergiu com facilidade. Desenvolveu-se num longo processo de intensas lutas sociais. Após a Revolução Industrial, a proibição do trabalho infantil; a definição da jornada de trabalho; a regulação do descanso semanal e de férias; o estabelecimento de sistemas de aposentadoria; a prevalência de formas de negociação coletiva do contrato de trabalho etc. foram lentamente constituindo um sistema de defesa da força de trabalho, ao lado da sacralização da propriedade. A social democracia e a progressão do socialismo foram decisivos para o direto trabalhista.

Os que estão tranqüilos com o custo-Brasil pelas deficiências de infra-estrutura são os que insistem em perfurar a defesa do trabalho dos brasileiros No passado o liberalismo econômico e, nos tempos atuais de globalização, o seu rebento, o neoliberalismo, são hostis ao direito ao trabalho. Confiam nas virtudes do mecanismo de mercado. Consideram o salário um preço igual aos demais e desconhecem as assimetrias entre o capital e o trabalho.

Tramita no Congresso Nacional a PEC 369/2005, de autoria do deputado federal Ricardo Berzoini, que visa modificar os artigos 8º , 11º e 114º e acrescentar um inciso ao artigo 37º da Constituição Federal de 1988. O projeto insinua a eliminação e "flexibilização" de direitos atuais, ao estabelecer a prevalência do que for negociado em relação à lei. Hoje, se uma negociação cancelar um direito, o trabalhador pode recorrer à Justiça, amparado na lei. Basta que considere que a lei lhe é mais favorável. O projeto Berzoini capeia uma forma velada de viabilizar o tão aspirado desejo empresarial de, mediante negociação coletiva, revogar ou diminuir direitos como FGTS, licença-maternidade, férias, décimo-terceiro etc.

É assimétrica a relação de poder negocial. No Brasil, com o gigantesco desemprego, em todas as faixas etárias e em praticamente todos os níveis de educação, qualquer empresário pode esmagar frágeis organizações sindicais. Isto já vem ocorrendo. Tem sido dinâmico o crescimento de emprego para quem tenha 11 anos ou mais de escolaridade. Contudo, o salário médio desta faixa cai continuadamente. É fácil entender que, com maior poder negocial, o empresário preenche as vagas tradicionais com candidatos com escolaridade mais sofisticada. Não é o diploma, entretanto, que garante o emprego de nível universitário, nem melhor salário: apenas facilita a escolha pelo empregador, que dispõe da grande carta que é a vaga. Dos 3.300 mil jovens que nos últimos dez anos obtiveram diploma universitário, 800 mil estão desempregados. Desesperados, acabam aceitando qualquer emprego. A Comlurb, no Rio de Janeiro, identificou engenheiros entre os candidatos a gari. A prefeitura de Santo André localizou portadores de diploma superior no concurso para coveiro. Em futuro próximo, qualquer caixa de supermercado terá diploma universitário? Em contraponto, apenas nas faixas com menor escolaridade têm sido verificada alguma melhoria salarial - todos analistas sabem que isto se deriva do salário mínimo, que tem crescido em termos reais. Em tempo: é um direito trabalhista.

O projeto Berzoini propõe que entidades de grau superior - confederações, por exemplo - possam negociar e assinar um acordo, em nome dos trabalhadores, sem consultar as assembléias de base. A entidade de grau superior também pode constituir um sindicato na base de outra. Permite, portanto, a pluralidade sindical. Incorporar o princípio da competição entre sindicatos, em uma sociedade impregnada de informalidade e desemprego, é um exercício enfraquecedor de um sindicalismo já fraco.

O padrão de vida de uma população tem um fundamento básico no salário real. A massa de salários é uma componente importante da demanda global interna, que alimenta as vendas empresariais. Comprimir salário real para aumentar competitividade nas exportações é destruir empregos ao atingir todas as atividades que forneciam para os antigos empregados. Não tem sentido destruir atividades ou comprimir padrão de vida das famílias para exportar mais. O mercado interno é muito mais confiável que o externo. Um exemplo bem atual: o Brasil exporta couro de vaca e sapatos. Os chineses estão destruindo o mercado externo para o sapato brasileiro, com ajuda da valorização do real. Pela última informação, 30 mil empregos foram destruídos na indústria calçadista. Em paralelo, crescem nossas vendas de couro para Hong Kong, China e Itália. Neste processo, em breve o brasileiro comprará numa loja Wal-Mart um sapato chinês, feito com couro de vaca nacional. Obviamente, quem perdeu emprego na indústria de calçados andará descalço.

Aqueles que estão tranqüilos com o custo-Brasil pelas deficiências de infra-estrutura - nem se preocupam com a acentuada queda dos rendimentos do trabalho na renda nacional (de 55% em 1960 para cerca de 37% hoje); ou que não se preocupam com o brutal desemprego; que consideram a repugnante taxa de juros necessária e que se deslumbram com o crescimento dos lucros bancários e dos ganhos na Bolsa - são os mesmos que trabalham para perfurar a defesa do trabalho dos brasileiros que têm a felicidade do emprego com carteira assinada. Incansáveis, prosseguirão perseguindo o trabalhador até a aposentadoria. A partir daí, a meta será desconstruir a Previdência Social. São os mesmos que falam de déficit previdenciário, mas escondem que as contribuições da seguridade vão para o superávit primário, que alimenta os juros repugnantes.