Título: Decisão do Congresso garante a arbitragem
Autor: Arnoldo Wald
Fonte: Valor Econômico, 02/12/2004, Empresas, p. B-2

A possibilidade de utilização da arbitragem pelo Estado, pelas empresas públicas e sociedades de economia mista é assunto do qual já tratamos várias vezes. Só voltamos a examiná-lo em virtude da recente e oportuna decisão do Congresso Nacional aprovando a Reforma do Poder Judiciário e permitindo implicitamente a solução de litígios pela via arbitral, sem excluir a sua utilização pelas pessoas jurídicas de direito público. Por proposta acolhida pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, pretendia-se vedar a utilização da arbitragem pelas entidades públicas, acrescentando um parágrafo ao art. 98 da Constituição, que teria a redação seguinte: "Ressalvadas as entidades de direito público, os interessados em resolver os seus conflitos poderão poder-se de juízo arbitral na forma da lei". Contra o referido texto mobilizaram-se não somente os meios jurídicos do país e as Câmaras de Comércio, mas também os governos estaduais e o próprio governo federal. Foi uma espécie de referendo ou plebiscito em favor da arbitragem. Inicialmente, a idéia foi retirar a expressão "Ressalvadas as entidades de direito público", mantendo-se a regra geral, que é a possibilidade de usar a arbitragem para a solução dos conflitos. Teríamos uma das poucas constituições do mundo a consagrar expressamente a arbitragem. Preferiu o plenário do Senado, em votação de destaque proposto pelo Senador Tuma, suprimir todo o parágrafo, pois a arbitragem não necessita de consagração constitucional. Embora a matéria não apresentasse maiores dúvidas para a jurisprudência e a doutrina dominantes, alguns acórdãos e vários juristas entendiam que as sociedades de economia mista e a fortiori o Estado não podiam submeter os seus litígios a um tribunal arbitral, só podendo recorrer à Justiça. Assim, ao rejeitar a proposta de vedação da arbitragem para as pessoas de direito público, a reforma constitucional decidiu a questão de modo definitivo. Tínhamos, aliás, uma tradição de arbitragem no direito público brasileiro, que foi usada para fixação de fronteiras, num passado mais remoto, e havendo legislação própria (art. 11 do DL 1312/74) admitindo que, nos contratos financeiros internacionais, a União Federal pudesse sujeitar-se a uma decisão arbitral. O decreto-lei em questão foi objeto de uma ação popular, na qual funcionamos, defendendo a sua constitucionalidade, tendo a impugnação ao texto legal sido rejeitada, tanto em primeira instância quanto pelo então Tribunal Federal de Recursos. Deve, aliás, ser lembrado que várias Constituições brasileiras admitiram expressamente a arbitragem como forma de resolver os conflitos internacionais (art. 4º da CF de 1946 e art. 7º da CF de 1967).

Vitória é do governo e da sociedade civil

Em relação às sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado e têm o mesmo regime que as empresas privadas, no campo do direito comercial (art. 173, II da Constituição vigente), não havia como impedir a aplicação da Lei nº 9.307, especialmente depois da decisão do Supremo Tribunal Federal. Assim mesmo, vários acórdãos e pareceres se manifestaram em sentido contrário. No tocante ao próprio Estado e às autarquias, poder-se-ia entender que a matéria dependeria de legislação ordinária. Efetivamente, vários diplomas que trataram das concessões previram expressamente a arbitragem, como aliás ocorre no projeto de lei das Parcerias Público-Privadas (PPP). É o regime que continua vigorando, na medida em que o texto constitucional manteve a faculdade de submissão das partes à arbitragem. Seria até possível dispensar a autorização legislativa prévia, pois a Lei nº 9.307 permite que todas as pessoas capazes de contratar possam valer-se da arbitragem. Não distinguindo o legislador entre pessoas de direito privado e de direito público, não deveria, em tese, o intérprete estabelecer uma diferenciação de tratamento que não fosse constitucional ou legalmente prevista. Por motivos ligados à segurança jurídica, entendemos, todavia, que a autorização prévia é útil e recomendável, para o Estado e as autarquias, mas que a mesma pode ser genérica e até, conforme o caso, dada por simples decreto. Trata-se de providência destinada a evitar futuras discussões, no interesse do contratante privado. É preciso salientar que, também, em outras legislações, houve, por longo tempo, resistência à adoção da arbitragem nos contratos administrativos, invocando-se para tanto a soberania nacional. Assim, na França, só recentemente se admitiu, em caráter excepcional, a cláusula compromissória nas parcerias público-privadas (PPP) em virtude de legislação de junho passado. Trata-se, pois, de uma evolução internacional que não deixa de estar vinculada à globalização e ao interesse de receber investimentos estrangeiros. Assim, considerando a importância crescente das diversas formas de parcerias, que são necessárias - e até imprescindíveis -, para o desenvolvimento da nossa economia, podemos considerar a decisão do Congresso Nacional em favor da arbitragem como constituindo uma vitória, não só do governo, mas também da sociedade civil.