Título: Ilusões e vitórias
Autor: Troster , Roberto Luis
Fonte: Valor Econômico, 27/10/2010, Opinião, p. A14

No clássico "Guerra e Paz", Leon Tolstoi descreveu a invasão de Napoleão na Rússia em 1812 com a Grande Armée. Os russos eram mais fracos militarmente, mas executaram com determinação uma estratégia, que foi sendo adaptada às circunstâncias, atraindo o inimigo para cada vez mais longe de suas linhas de suprimentos e, com isso, conseguiu enfraquecê-lo aos poucos.

No final da campanha, mais de 90% dos soldados franceses haviam morrido e, apesar de Napoleão ter triunfado em todas as batalhas importantes, perdeu a guerra, a fama de gênio militar invencível e, pouco tempo depois, o império. Seu erro mais grave foi não ter desistido da invasão quando tudo indicava que não poderia mais triunfar. A ilusão o enganou.

É possível fazer um paralelo entre aquela contenda e a guerra cambial em curso. Atualmente, não há ataques de cavalaria nem soldados com baionetas, mas há fábricas destruídas pela perda de competitividade e um encolhimento dos horizontes econômicos por conta da derrota. Em ambas é possível ganhar todas as batalhas e perder a guerra e a lição mais importante, a necessidade de adaptar a estratégia às circunstâncias para poder triunfar.

Com juros mais baixos e câmbio desvalorizado, o país atrairá investimentos para ampliar a riqueza

No conflito, a China está mostrando-se vencedora: em 20 anos, quadruplicou o valor de seu Produto Interno Bruto (PIB) em relação ao brasileiro, fez a maior inclusão social da história, tornou-se a segunda maior economia do planeta e as projeções disponíveis apontam que vai continuar crescendo mais que o resto do mundo nos próximos anos.

A estratégia chinesa tem três pilares: aumentar a produtividade, ter superávits agora para ter mais recursos no futuro e sustentabilidade econômica nas suas políticas. Sua execução é disciplinada. Um exemplo ilustra sua determinação: em menos de três anos decidiram e construíram um novo aeroporto para os Jogos Olímpicos; aqui, há quase trinta, ainda não se iniciaram as obras do terceiro terminal de Guarulhos.

Quanto mais passa o tempo, mais forte fica a China. Como tem um superávit comercial, cada dólar a mais de reservas garante um rendimento financeiro e recursos para investir em escolas e estradas e crescer ainda mais. Não é razoável esperar que mudem o que está dando certo. O resto do mundo pode protestar quanto quiser que a China vai continuar a fazer o que tem que fazer.

No Brasil a estratégia para ganhar competitividade é reclamar dos chineses e tentar desvalorizar o câmbio, com compra de divisas e outras ações. As reservas custam a diferença entre a taxa externa e a interna, portanto, quanto maiores forem, mais impostos devem ser arrecadados para pagar seus juros e menos recursos públicos para investir em fazer o país crescer. Perde-se nas duas pontas, mais tributos para pagar investidores e menos fábricas e empregos por conta do câmbio valorizado.

Há mais um aspecto perverso na política de reservas elevadas: quanto maior for seu volume, maior será a sinalização de segurança aos investidores estrangeiros, atraindo ainda mais recursos externos para comprar títulos brasileiros de renda fixa, gerando um círculo vicioso. Algumas medidas, como o aumento do IOF, alardeadas como batalhas vitoriosas, são apenas medidas protelatórias que não alteram o quadro básico.

Os Estados Unidos acabaram de anunciar uma expansão monetária vultosa que agravará ainda mais a situação aqui e não resolverá o problema do emprego americano. Parte desses recursos será emprestada a investidores de lá a taxas baixas e aplicados aqui a juros altos. Não trarão empregos para o país e vão sair correndo quando a maré virar. É uma dinâmica perversa: mais juros, mais impostos, menos investimento e menos crescimento.

As projeções apontam que o PIB do Brasil vai crescer abaixo da média mundial a partir de 2011 e alguns setores da indústria nacional estão perdendo fatias de mercados no exterior, e o que é pior, aqui também. As contas externas estão se deteriorando. Não é um quadro alarmante, mas mostra a necessidade de aprimoramentos. Insistir na linha atual só vai piorar ainda mais o cenário. O que era um remédio virou um veneno.

Há um esgotamento da atual política econômica. Entretanto, o momento é oportuno para mudar. Domingo será conhecido o novo presidente. O potencial para fazer acontecer é grande: o pré-sal, a janela demográfica e a Olimpíada 2016 podem ajudar a alavancar o crescimento, o quadro macroeconômico é bom e a credibilidade externa do país está em alta. É hora de olhar a realidade como ela é e ajustar a estratégia.

Há percepções que devem ser mudadas: o Real não é uma moeda forte, é uma moeda valorizada; o único objetivo não é crescer em 2010, é construir um futuro; a convivência com desperdícios de recursos é nociva; as dívidas assumidas terão que ser pagas um dia; ficar só debatendo o aborto, quando se está abortando o futuro é ruim; e culpar os chineses pelo câmbio em vez de mudar o que acontece não vai dar em nada.

Mais especificamente, na questão cambial, o fato é que, no atual regime macroeconômico, o Banco Central não consegue manter a taxa de câmbio e de juros fora da faixa de equilíbrio. Portanto, devem alterar-se as condições que geram esse patamar. Ou seja, reduzir a cunha financeira, eliminar os compulsórios, desemperrar os canais de transmissão da política monetária, acabar com anacronismos no tratamento do câmbio e melhorar a dinâmica fiscal. Com juros mais baixos e câmbio mais desvalorizado, o país atrairá os investimentos que convêm, aqueles que ampliam sua capacidade de gerar riquezas.

O Brasil tem que avançar mais, superar os três pilares de uma década atrás: câmbio flexível, metas de inflação e equilíbrio fiscal, e propor uma estratégia mais ambiciosa que inclua progressos em produtividade, na remoção dos anacronismos burocráticos, na modernização do quadro institucional, no aprimoramento da gestão pública, incluindo a composição de receitas e despesas, e na construção de políticas para melhorar a base produtiva do país.

A obra de Tolstoi nos revela o potencial destrutivo da ilusão quando não é contrabalanceado com uma visão objetiva da realidade, foi a causa da derrota de Napoleão. Mostra também o mérito de um povo, que mesmo em número menor, com sua determinação e estratégia adequada venceu um exército mais forte, foi a razão da vitória de Kutuzov, o comandante dos russos. O Brasil pode fazer melhor.

Roberto Luis Troster , doutor em economia pela USP, foi economista-chefe da Febraban, da ABBC e do Banco Itamarati.