Título: Manobras sinalizam risco fiscal
Autor: Salto , Felipe
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2010, Opinião, p. A12

As eleições presidenciais de 2010 aparecem, aos olhos do mercado, como um "não evento", isto é, sem implicações significativas para a continuidade da política econômica. A candidata que lidera as pesquisas sinalizou a continuidade da política macroeconômica, o que parece ser suficiente para o mercado tomar como dada a continuidade do tripé macroeconômico. Todavia, a utilização de manobras fiscais na direção de "fabricar" o superávit primário sinaliza que, salvo mudanças na condução das contas públicas, a má gestão fiscal deve prosseguir.

A preocupação com a questão fiscal deve-se à natureza das instituições que conduzem as contas públicas no país. Trata-se daquilo que a literatura chama de "microinstituições". As regras do jogo dessa natureza dificultam a ação de controle por parte dos demais poderes do Estado, bem como dos grupos de interesse. A política fiscal é, do ponto de vista das mudanças institucionais, o espaço ideal para a ação dos tomadores de decisão. A expansão dos gastos públicos gera benefícios no curto prazo, dado que representa aumento na quantidade de recursos nas mãos do Estado para a satisfação das demandas de grupos sociais.

Os custos do expansionismo fiscal para a eficiência da economia aparecem apenas no médio prazo. Ademais, a expansão dos gastos leva a benefícios concentrados para grupos de interesses particulares, enquanto os custos ficam dispersos em sociedade. É o mundo ideal para políticos maximizarem seu capital eleitoral. Esse desenho de política dificulta a ação dos mecanismos de controle.

Está em curso no atual governo, especialmente no pós-crise, uma série de mudanças institucionais na direção de "fabricar" superávit primário por meio de manobras contábeis. Tal estratégia decorre da cristalização do cenário no qual o crescimento das receitas em 2010 não será suficiente para o cumprimento da meta cheia. Uma análise do cronograma orçamentário autoriza tal diagnóstico. Quando consideramos os dados da Lei Orçamentária Anual de 2010 (LOA), já ajustados pelas reprogramações e reavaliações, vemos que, de fato, a meta fiscal pura não será cumprida neste ano. A não ser que o governo conte com receitas atípicas e as reconheça nos resultados primários para elevar artificialmente o superávit primário. A execução que ainda precisa ser efetuada, nos próximos 5 resultados (a partir de agosto), deixa evidente o cenário de não cumprimento de metas.

Em 2010, a LOA trazia um gasto total orçado em R$ 687,9 bilhões, tendo sido reduzido ou contingenciado para R$ 664,2 bilhões, após ajustes nas despesas discricionárias e nos gastos obrigatórios com pessoal. A meta fiscal fixada para o ano é de 2,15% do PIB ou cerca de R$ 76 bilhões e o primário até julho está em R$ 25,6 bilhões. Com isso, faltam R$ 299,9 bilhões em despesas a serem executadas até o final do ano, o que representa um crescimento de 14% ante o mesmo período do ano passado (agosto a dezembro), inclusive inferior ao crescimento dos sete primeiros meses comparados ao mesmo período de 2009, que foi de 17,8%.

Para que tal patamar de gastos fosse pago e a meta restante de R$ 50,4 bilhões (para atingir os R$ 76 bilhões anuais) fosse cumprida, sem os abatimentos de gastos do PAC, as receitas líquidas totais teriam que atingir o nível de R$ 350,2 bilhões, nos próximos cinco meses, o que significaria um crescimento de 24% ante o mesmo período do ano passado, uma aceleração de 5,6 pontos percentuais. na taxa de 18,4% obtida nos sete primeiros meses de 2010 contra o mesmo período de 2009. Em outras palavras, teria que ocorrer o contrário do que a dinâmica das receitas, até o momento, tem apontado e, mais do que isso, teria que ocorrer um movimento contrário à dinâmica da atividade, que apresentará taxas mais brandas de crescimento até o final de 2010.

A MP nº 500 e o Decreto nº 7.279 foram editados para sustentar uma nova empreitada do governo em busca de receitas, dados o forte crescimento das despesas e a insuficiência do crescimento da arrecadação para sustentar um primário alinhado à meta fiscal. O decreto autoriza "(...) observada a equivalência econômica na operação, a cessão onerosa de créditos da União, no valor de R$ 1,4 bilhão (um bilhão e quatrocentos milhões de reais), para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, decorrentes de seus direitos relativos a participações societárias no capital das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. - Eletrobrás." (Art. 1º).

Em outras palavras, o BNDES ficará com o direito de recebimento de créditos futuros, em troca do pagamento, hoje, à União, de R$ 1,4 bilhão, algo que já havia ocorrido ao final do ano passado, quando o governo também buscou utilizar artifícios contábeis para "fazer primário".

Nesse sentido, vemos o não cumprimento da meta fiscal anual, para o governo central, com base na própria programação orçamentária oficial e na dinâmica prevista das receitas. Nossa projeção para o primário do governo central é um superávit de 1,5% do PIB no ano (ante meta de 2,15% do PIB).

Assim, é imperativo que o próximo governo mude a atual condução da política fiscal para que siga a trajetória de crescimento sustentável não inflacionário. A continuidade da política fiscal dos últimos anos do governo Lula levará, necessariamente, à consolidação de limites cada vez maiores ao crescimento econômico.

Felipe Salto é economista pela FGV/EESP, analista da Tendências Consultoria e cofundador do Instituto Tellus.

Rafael Cortez é professor de Política na PUC-SP e cientista político da Tendências Consultoria.