Título: O Acta e os direitos de propriedade intelectual
Autor: Souza , André de Mello
Fonte: Valor Econômico, 17/09/2010, Opinião, p. A14

A inspeção em aeroportos de equipamentos que armazenam digitalmente filmes e músicas pode se tornar procedimento comum. Dependendo da constatação de violação de direitos autorais, esses equipamentos podem ser apreendidos, ainda que nenhuma queixa tenha sido feita, e seus donos sujeitos a multas. Da mesma forma, bens protegidos por direitos de propriedade intelectual (DPI) poderão ser apreendidos em alfândegas de países onde se encontram em trânsito ainda que sejam perfeitamente legais nos países para onde estão sendo exportados e serão comercializados. Tais práticas de criminalização do uso de bens protegidos por DPI podem resultar do Acordo Comercial Anti-Contrafação (conhecido pela sigla em inglês Acta) ora em negociação.

Como resposta a pressões de empresas dependentes da proteção dos DPI, as discussões preliminares para o Acta ocorreram em 2006 entre Canadá, Comissão Europeia, Japão, Suíça e Estados Unidos. Até o momento, nove rodadas de negociação já foram realizadas em sigilo contando com mais de 30 países, incluindo a Austrália, os Emirados Árabes Unidos, a Jordânia, o México, o Marrocos, a Nova Zelândia, a República da Coreia e Cingapura. A previsão é de que o acordo seja concluído este ano.

Acta não representa uma iniciativa isolada, mas, ao contrário, é parte de uma estratégia global de empresas e países que objetiva globalizar os DPI. Apesar da vigência do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (conhecido pela sigla em inglês Trips) no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) desde 1995, e de numerosos outros acordos bilaterais, regionais e multilaterais que tratam dos DPI, essas empresas e países encontram crescente dificuldade para defender e promover seus interesses nos fóruns existentes. Os países em desenvolvimento - dentre os quais o Brasil tem desempenhado um papel de liderança - têm tido atuação cada vez mais assertiva e obtido importantes vitórias em negociações relativas à governança global dos DPI, dentre as quais se destacam a aprovação da Declaração sobre o Acordo Trips e Saúde Pública na OMC em 2001 e a Agenda para o Desenvolvimento na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) em 2007. Daí a decisão de um grupo de países desenvolvidos, que supostamente compartilham da mesma visão sobre a proteção global dos DPI, de levar as negociações para outro fórum plurilateral e criar ainda outro acordo, o Acta.

A estratégia dos países fundadores do Acta buscou, outrossim, consolidar propostas preliminares em negociações informais entre eles antes de apresentá-las para grupos maiores de países. Tal procedimento de "expansão dos círculos de consenso" visa fazer com que as propostas acordadas nos grupos pequenos ganhem maior peso político frente aos grupos maiores, o que não ocorreria se o grupo maior negociasse propostas de todos seus membros desde o início. Ademais, a falta de transparência que caracteriza as negociações tem por finalidade evitar a oposição da comunidade internacional e contradiz a tendência recente dos fóruns multilaterais de permitir a observação e intervenção de organizações não governamentais e de divulgar os textos preliminares dos acordos na internet.

Por fim, o discurso dos defensores do Acta tem se concentrado em questões de "segurança" do consumidor com o objetivo de enfatizar o perigo dos bens pirateados. De fato, é notável que o Acta não faça distinção entre a falsificação de marcas e patentes e a violação de direitos autorais, e, mais do que isso, deliberadamente confunde-os sob a rubrica de "contrafação" ou "pirataria". É evidente que medicamentos tóxicos ou de baixa qualidade representam uma ameaça para a saúde pública. Porém, é difícil conceber como produtos que contém músicas, filmes, ou software, assim como vestuário, podem representar um perigo ao consumidor. O exagero retórico chega às alegações de que a contrafação financia o terrorismo e o crime organizado, alegações essas muito pouco corroboradas por estudos empíricos.

Apesar de o Brasil não participar das negociações do Acta, o acordo produzirá implicações deletérias significativas para o país. A apreensão de medicamentos importados pelo Brasil em países de trânsito e a responsabilização de provedores da internet que operam internacionalmente são somente as mais diretas e imediatas. O acordo pode ainda influenciar negativamente, sob forma de lobby de grupos privados, discussões em curso no país sobre a revisão da Lei de Direito Autoral. Em âmbito global, o Acta deve criar dubiedade e ineficiência institucional no que tange à normatização e arbitragem dos DPI. Suas novas regras terão que ser harmonizadas e sobrepostas a diversos acordos, e sobretudo o acordo Trips.

O Brasil tem recusado qualquer reconhecimento ao Acta e denunciado suas contradições e hipocrisias. Notadamente, há gritante desequilíbrio no texto oficialmente divulgado entre os direitos dos detentores de propriedade intelectual e os direitos dos usuários de tecnologias, dos acusados de infração, e de terceiras partes como os provedores de internet. A presunção da inocência até prova em contrário é praticamente abandonada; e a utilização, ainda que lícita, privada, individual e sem fins comerciais da propriedade intelectual alheia é criminalizada, mesmo quando não há intenção de infringir direitos privados ou conhecimento dessa infração. Além disso, cabe reconhecer que o principal incentivo para contrafação são os preços altos resultantes justamente dos monopólios gerados pela proteção dos DPI. É necessário distinguir os diferentes tipos de infração dos direitos de propriedade intelectual e exigir análises empíricas, baseadas em dados confiáveis, sobre os custos da pirataria e suas ligações com o crime e o terrorismo. Ao engajar nesse debate, o Brasil certamente contribuirá para dar maior transparência às negociações do Acta e ao processo de globalização dos direitos de propriedade intelectual.

André de Mello e Souza é doutor em Ciência Política pela Universidade de Stanford e técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).