Título: 2009, o ano em que viver isolado ajudou a crescer
Autor: Villaverde , João
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2010, Brasil, p. A3

A crise mundial passou longe de muitos países. Enquanto o Brasil deve ter fechado 2009 com um variação próxima a zero no Produto Interno Bruto (PIB) - o número oficial só será conhecido em março -, e nações desenvolvidas experimentaram recessões de até 5% do PIB, alguns países em desenvolvimento passaram pela mais severa turbulência mundial desde o crash de 1929 como se nada tivesse acontecido. A China, com alta de quase 9% no PIB no ano passado, surge como exemplo óbvio. Mas os chineses não estão sozinhos. Mais que isso: o crescimento acelerado de países como China e Índia (alta de 6% no PIB) ajudou países mais pobres a crescer fortemente em 2009.

Nações que normalmente não figuram nas análises de pesquisadores e estrategistas econômicos, como Bangladesh, Mongólia, Senegal, Sri Lanka ou República do Congo passaram por 2009 como se tivesse sido um ano de "bonança". Segundo levantamento da Agência de Inteligência americana (CIA, na sigla em inglês), que elencou estimativas nacionais de 191 países quanto à variação do PIB no ano passado, o Brasil ficou na 85ª posição, e a taxa mais expressiva não foi registrada pela China, mas pelo Qatar - 9,2%. Na outra ponta, entre os piores resultados, está a Rússia, que viu sua atividade mergulhar 8,5%. Mais sintomático é o fato de que o petróleo ajuda a explicar os dois resultados.

Do auge à derrocada, o preço do barril de petróleo caiu de US$ 161 para US$ 40, entre 2008 e 2009, fazendo com que países detentores de grandes reservas do óleo - antes beneficiados pela entrada de dólares oriundos da exportação - sofressem com falta de moeda estrangeira. Junto com isso, o pânico instaurado nos mercados financeiros fez com que os fluxos de capitais se retraíssem, ajudando a intensificar a necessidade de se financiar internamente.

Enquanto o Qatar ampliou o endividamento público em dois pontos percentuais, alcançando 7,1% do PIB, e aproveitou dólares de suas reservas constituídas no passado (com a venda de petróleo) para contrabalançar as turbulências, os russos passaram por abalos sísmicos. Mais de um terço das reservas internacionais da Rússia, de cerca de US$ 600 bilhões antes da crise, foram queimados para sustentar a depreciação de sua moeda, o rublo. Outros US$ 200 bilhões foram destinados ao sistema financeiro, dinheiro que, em sua maior parte, não alcançou as famílias. O desemprego na Rússia saltou de 6,5%, em 2008, para 8,9%, no ano passado. No Qatar, por outro lado, o desemprego pouco se alterou, passando de 0,4% para 0,5%, no mesmo período.

A grande dependência de um produto - como o petróleo, por exemplo - serviu para intensificar os efeitos negativos da crise econômica. Para Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas (FGV), foram duas as principais formas de contágio da crise. A primeira se deu pela intensidade com que os países se utilizavam do sistema financeiro internacionalizado. Em segundo, a exposição ao comércio exterior. "Assim, os países mais industrializados, com sistema financeiro desenvolvido, e profunda conexão comercial foram os que mais sofreram", afirma Langoni. "No sentido inverso, os menos interligados financeira e comercialmente com o resto do mundo tiveram um baque menor."

No caso do continente africano - o mais pobre do mundo -, o "isolamento" acabou se revelando importante no ano passado. Segundo Olu Ajakaiye, diretor de pesquisas do African Economic Research Consortium (Centro de Pesquisas Econômicas da África, sediado no Quênia), a performance "boa, relativamente ao resto do mundo", das nações africanas se explica pelo fato de que "pouquíssimos países são integrados ao sistema financeiro global".

Em entrevista concedida por e-mail ao Valor, o pesquisador ressalta que, mesmo os países africanos com alguma conexão financeira com o mundo desenvolvido não sofreram maiores consequências porque "o sistema financeiro, nesses países, ocupa pequena parcela do PIB". Assim, diz Olu, "os obstáculos financeiros foram facilmente compensados pela performance da agricultura e das indústrias de minérios". Além disso, diz o especialista, o processo de aceleração da atividade, verificado desde o início da década, "continuou no ano passado independente da crise". Segundo Olu, boa parte das exportações africanas são dirigidas à China. Dessa forma, a alta de 8,4% no PIB chinês e de 6,1% na Índia, segundo estimativas oficiais coletadas pela CIA, permitiu aos africanos "manter o ingresso de divisas".

O forte crescimento dos asiáticos, no entanto, apresenta "nuances". Segundo Eliana Cardoso, economista-chefe do Banco Mundial para o Sul da Ásia, a região - que agrega Afeganistão, Bangladesh, Butão, Índia, ilhas Maldivas, Paquistão, Nepal, Índia e Sri Lanka - é "instável", mas acabou ingressando em 2009 em condições menos desfavoráveis que nos anos anteriores, uma vez que os preços recordes de commodities e petróleo foram desarticulados pela crise. "São países que estavam em grande desvantagem por serem importadores de alimentos, então, de certa forma, o tombo dos preços internacionais acabou ajudando seus mercados domésticos", avalia Eliana.

A situação de Bangladesh, para a economista, é simbólica. O país cresceu 5,7% no ano passado - na região, menos apenas que a Índia - sustentado por rápida industrialização e um sistema privado dinâmico. "Mas não basta olhar apenas o nível do PIB", afirma. "O país convive com níveis incríveis de corrupção, com muita pobreza e, além disso, parte de base rebaixada", diz Eliana, referindo-se ao ciclone Sidr, que, em novembro de 2007, devastou a infraestrutura do país - destruiu também os Sunderbans, a maior floresta de manguezal do planeta, ao sul de Bangladesh. "Trata-se de um país pobre, mas dinâmico, que está integrando as mulheres em seu mercado de trabalho, aumentando sua área industrial, mas que lida com muita corrupção ainda", afirma Eliana.

Seguindo a lógica do isolamento, países como Etiópia, Senegal e Coreia do Norte, com pequena participação no comércio mundial e fraca ramificação financeira, justificam parte de suas elevadas taxas de crescimento alcançadas em 2009. Na Etiópia, o segundo país do continente africano com maior crescimento no ano passado (6,1%, ante 7,5% da República do Congo), além de seu isolamento econômico, houve a combinação entre bom período climático e base rebaixada. Cerca de 85% das pessoas empregadas trabalham no campo, que responde por 45% do PIB, segundo dados da CIA. Boas condições climáticas, portanto, ajudaram na colheita de café, o principal item produzido em solo etíope. Ao mesmo tempo, a seca que devastou sua agricultura entre 2002 e 2003 - fazendo o PIB cair 3,3% no período - permitiu que, desde então, o país imprimisse ritmo elevado de crescimento.

A reconstrução frente a desastres naturais ou guerras também ajuda a explicar o crescimento elevado observado em 2009 por países subdesenvolvidos. Dessa forma, a região da faixa de Gaza experimentou no ano passado crescimento elevado, de 5,5%, na esteira da guerra de 21 dias travada contra Israel, entre dezembro de 2008 e 19 de janeiro de 2009. O saldo de 1.400 mortos e infraestrutura destruída permitiu que mesmo a incipiente indústria têxtil e de processamento de alimentos avançasse, para fazer frente às necessidades criadas pela reconstrução. Do outro lado da fronteira, Israel, por sua vez, decresceu 0,3%, graças a sua ligação - financeira e comercial - com os Estados Unidos.

Da mesma forma, no sul asiático, os países passam por recuperação de atividade após conflito. Para Eliana, do Banco Mundial, o "problema mais grave" da região são os conflitos civis e militares. Conforme elenca a economista, o Paquistão lida com terrorismo; o Afeganistão com a ocupação americana; o Nepal se reconstrói depois de dez anos em guerra; e o Sri Lanka convive com eleições turbulentas, em que o candidato da oposição está preso. "Não é fácil fazer política econômica nessas condições", adverte.

Para Langoni, países como China e Índia serviram para amortizar o choque, sustentados em ações "decisivas" do Estado, que pode lançar mão de gastos e incentivos fiscais sem incorrer em déficits públicos, pois formaram grandes reservas antes da crise. "A crise deixa evidente que há limites objetivos de solvência externa, não é qualquer economia que pode praticar continuados déficits. Os europeus têm margem de manobra muito menor que os EUA, que continuam sendo financiados pelo resto do mundo. A questão em 2010 está em ver até onde os países da União Europeia podem chegar."