Título: Só medida inclusiva garante crescimento sustentado ::
Autor: Studart , Rogério
Fonte: Valor Econômico, 07/01/2010, Opinião, p. A8

O desemprego nos Estados Unidos chegou recentemente a 10,2%, um recorde desde 1983; enquanto a Fannie Mae, maior instituição de financiamento hipotecário dos Estados Unidos, recentemente salva da bancarrota pela enorme injeção de recursos públicos, anunciou mais um prejuízo recorde (US$ 20 bilhões) e pediu mais apoio do governo.

Esses dados são emblemáticos de dois problemas da recuperação americana e de outras economias desenvolvidas: por um lado, o setor real está sobrevivendo de recursos e incentivos fiscais ao consumo de duráveis e ao setor imobiliário; por outro lado, o setor financeiro continua na UTI, recebendo uma enorme quantidade de recursos das autoridades monetárias que, se não ressuscitam a oferta privada de crédito, explicam parcialmente a bonança do mercado de capitais nos EUA; e, nos países emergentes, a enxurrada de fluxos financeiros.

O fato é que, para qualquer lado que se olhe o sinal é o mesmo: a recuperação das economias desenvolvidas parece frágil, porque é incapaz de gerar os níveis de emprego, renda e financiamento privado necessários para um crescimento robusto sustentado. Essa realidade sugere problemas significativos para a economia global, já que a dinâmica da globalização nas últimas três décadas esteve calcada em pelo menos dois pilares: alguns países desenvolvidos (com exceção de Alemanha e Japão) servem como polos de demanda agregada, enquanto outros (os chamados emergentes, mais o Japão e a Alemanha) crescem com base numa produção voltada a atender essa demanda. Por sua vez, os demais países em desenvolvimento (especialmente os produtores de petróleo e insumos básicos) crescem a reboque desses últimos.

Dado o quadro atual de crescimento sem emprego e sem financiamento privado nas economias desenvolvidas (especialmente nos EUA), muitos economistas depositam na China e outras economias emergentes a esperança de recuperação da economia mundial - ou seja, num reequilíbrio de fluxos de comércio e financeiro entre os dois polos. Mas esse "reequilíbrio" tem dois empecilhos importantes: primeiro, exige que países como a China (e o Brasil) aumentem seu consumo doméstico muito rapidamente, com igual ou maior expansão dos déficits comerciais com países atualmente deficitários; em segundo lugar, e por conseguinte, que estejam dispostos a ver suas reservas internacionais caírem, o que permitiria um reequilíbrio dos fluxos e estoques financeiros. Não parece factível que isso ocorra no médio prazo.

Na China, por exemplo, o crescimento de 8,5% até agora alcançado tem sido calcado no investimento em infraestrutura e capacidade produtiva, financiado com generosos empréstimos de longo prazo - e não no consumo. Esse crescimento tem sido alcançado com persistentes superávits comerciais e contínua acumulação de reservas internacionais. Além de não ser adequado para resolver os desequilíbrios da economia mundial, esse crescimento pode ser vulnerável se a expectativa de demanda para essa capacidade produtiva ampliada não for também crescente. Isso inevitavelmente levaria à queda do investimento na China; e por isso muitos economistas já preveem uma desaceleração em 2010. No Brasil, apesar da enorme valorização do Real (causada em parte pelos excessivos fluxos financeiros), continuamos - felizmente - com superávits comerciais. Seria impensável que as autoridades chinesas ou as nossas desejassem mudar essa estratégia num momento em que suas economias necessitam de demanda externa - para manter e expandir o emprego doméstico - e de reservas internacionais altas - para contrapor-se à vulnerabilidade imposta pela volatilidade dos fluxos financeiros internacionais. Por sua vez, nos estados Unidos, principal polo de demanda, mesmo a desvalorização do dólar e o alto nível de desemprego não parecem suficientes para reativar as exportações líquidas de forma significativa - na realidade as exportações americanas vêm caindo desde agosto de 2008, e a redução do déficit comercial só tem ocorrido pela queda ainda maior das importações.

Dados os limites dos ajustes entre os dois grande polos de demanda e oferta agregada globais, o crescimento mundial mais robusto e sustentado exige uma diversificação. E dadas as restrições de balanço de pagamentos e fiscais de grande parcela dos países em desenvolvimento, parece lógico que isso só pode ocorrer com massivas transferências de recursos para os países mais pobres e um apoio substancial à redução da pobreza no nível global. Ou seja, um crescimento mundial mais sólido e sustentado deveria advir de uma globalização mais inclusiva.

Mas isso só pode ocorrer se a comunidade internacional colocar o compromisso com o desenvolvimento econômico e social e a inclusão no centro das suas discussões (sobre comércio, arquitetura financeira, transferências financeiras etc). Isso requer uma nova visão sobre o apoio ao desenvolvimento e a redução da pobreza a nível global.

Até o momento, mesmo em instituições como o Banco Mundial, a visão que ainda parece prevalecer é a de que o apoio ao desenvolvimento é filantropia (daí os países desenvolvidos serem chamados de "doadores" e os em desenvolvimento de "recipientes"). Essa me parece ser a principal razão porque em momentos de dificuldades fiscais nas economias do G-7 um tempo relativamente pequeno seja dedicado às instituições de financiamento ao desenvolvimento (como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros bancos regionais de desenvolvimento).

A esperança é que, com a crise, e no ambiente de uma nova governança internacional, que creio que se inaugurou com o G-20, o apoio ao desenvolvimento seja visto por fim não só como uma obrigação moral da comunidade internacional, mas também como um bem público global - que beneficia a todos em diversos planos (econômico, social, de segurança etc), inclusive na construção de um crescimento mundial mais robusto e sustentado. E é isso que o Brasil, com conhecimento de causa, tem dito ao G-20 e ao mundo.

Rogério Studart é diretor executivo adjunto representando o Brasil e outros oito países no Banco Mundial.