Título: O eterno debate sobre as reservas cambiais
Autor: Sias , Rodrigo
Fonte: Valor Econômico, 24/11/2009, Opinião, p. A14

Desde o início do século, os países emergentes, em especial asiáticos, têm optado por uma política de intensa acumulação de reservas cambiais. As reservas saíram de US$ 1 trilhão para mais de US$ 5 trilhões entre 1990 e 2008, com a razão "reservas/PIB" aumentando dramaticamente, passando de 5% para 27%. Atualmente, cerca de 3/4 das reservas mundiais estão nas mãos de autoridades monetárias de países emergentes.

O debate sobre o nível adequado de reservas internacionais é antigo. Henry Thornton já escrevia em 1802, no seu artigo clássico "Paper Credit of Great Britain", que as reservas de ouro britânicas, mesmo sendo custosas para o Tesouro, deveriam ser suficientes para lidar com flutuações do comércio e do balanço de pagamentos e com as demandas extraordinárias por ouro dos agentes domésticos em caso de pânico financeiro. John M. Keynes, em seu "Treatise on Money", de 1930, também discorreu sobre o nível ótimo de reservas e concluiu que este dependeria do grau de integração comercial e financeira de cada país: quanto maior a integração, maior o nível de reservas necessário.

Outra versão dessa proposição é a sugerida pelo ex-ministro da economia argentina, Pablo Guidotti, e corroborada pelo ex-presidente do Federal Reserve (Fed, banco central americano) Alan Greenspan. A regra "Guidotti-Greenspan", endossada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), diz que o nível ótimo de reservas é aquele que se iguala ao passivo externo de curto prazo do país em questão. No entanto, na mesma Argentina dos anos 2000 de Guidotti, a crise mostrou que tal montante não foi suficiente. Ao só se preocupar com o comportamento dos investidores externos, a regra não deu atenção aos comportamentos dos agentes domésticos, ignorando os potenciais efeitos deletérios da abertura financeira.

Maurice Obstfeld, Jay Shambaugh e Alan Taylor apresentam evidências empíricas de que o nível ótimo de reservas poderia ser aquele que fizesse frente ao tamanho dos passivos financeiros potencialmente conversíveis em moeda estrangeira. Graças à integração financeira, os agentes têm capacidade de converter seus ativos domésticos em ativos externos, criando um novo caminho para a "fuga de capitais". O nível ótimo de reservas seria, portanto, aquele que incorporaria todos os passivos de curto e médio prazo do país, incluindo aqueles presentes no balanço de seu sistema financeiro e não só os passivos externos, o que eu chamaria de regra "Guidotti-Greenspan Expandida" ou "Regra Moderna de Thornton-Keynes". A grande acumulação de reservas cambiais seria, assim, a contrapartida ao aprofundamento da integração financeira experimentada pelos países emergentes - uma defesa contra a volatilidade dos capitais.

O FMI vem tentando reconquistar seu prestígio, propondo que ele mesmo exerça o papel de "emprestador de última instância mundial", em lugar da intensa acumulação de reservas cambiais, ditas "excessivas" e custosas para os países, em termos fiscais e sociais. Os países emergentes, no entanto, não vão querer aceitar a tutela e as restrições impostas pelo Fundo. Por isso, espera-se que continuem construindo suas próprias defesas.

Nesse contexto, o uso de fundos soberanos para administrar as reservas cambiais surge como uma opção cada vez mais utilizada, para aumentar o retorno das reservas e propiciar receitas fiscais.

Há, ainda, o problema da coordenação: os desequilíbrios mundiais e os ajustamentos das taxas de câmbio são impedidos pela acumulação de reservas, pois as últimas aumentam os graus de liberdade da política econômica. As reservas parecem enfraquecer decisivamente a configuração do corolário chamado de "trindade impossível" ou "trilema de política econômica", ajudando os "policy makers" a conciliar três objetivos conflitantes: a estabilização da taxa de câmbio, política monetária autônoma para perseguir metas de inflação e amplo movimento de capitais. Com a introdução do novo elemento - a reserva cambial - poder-se-ia nomear essa nova configuração de "quarteto de política econômica".

No Brasil, o debate vem se intensificando com os custos fiscais elevados das reservas, as seguidas intervenções do BC no mercado de câmbio e a preocupação com a apreciação contínua da taxa de câmbio. Os custos das reservas brasileiras são mensuráveis, enquanto seus benefícios são difusos e não observáveis diretamente, embora se acredite que foram as reservas que blindaram decisivamente o país na crise.

Embora o diferencial de juros seja significativo, não é ele o responsável pela apreciação, ainda que as intervenções "esterilizadas" puxem o cupom cambial atraindo mais capital. Esse processo tem mais a ver com o movimento global de "derretimento" do dólar, o renovado apetite por risco e o momento da economia brasileira que atrai capitais para compra de ativos privados, sobre os quais o BC não tem poder, a não ser que resolva usar controles de capitais. Na atual fase, os controles impediriam os benefícios alocativos privados, as recentes vendas de ações e as linhas de captação externa. Mesmo a recente medida do IOF será insuficiente e paliativa. Para conter a apreciação cambial, o Brasil deve recorrer a outros instrumentos, como os fundos soberanos.

Com o fundo soberano, os custos fiscais líquidos diminuiriam sensivelmente devido ao maior rendimento das reservas, o que aumentaria a margem para intervenções agressivas no mercado de câmbio, de forma a coordenar a expectativa dos agentes. Também não haveria necessidade de superávits fiscais adicionais, apenas gestão de ativos e passivos do BC e do Tesouro. A discussão sobre o nível ótimo de reservas também perderia o sentido, uma vez que o relevante seria o benchmark pretendido para o rendimento das reservas e o patamar da taxa de câmbio.

No entanto, trata-se apenas de teorias ainda não provadas. A prática, como todos economistas sabem, costuma ser bem diferente.