Título: Política anticíclica para o gás natural
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2009, Opinião, p. A14

O mercado e a política de gás natural no Brasil apresentaram nos últimos cinco anos um comportamento ciclotímico. O mercado alternou momentos de grande sobra de gás e escassez e a política usada para enfrentar essa realidade ora era pragmática e se utilizava de heterodoxias, como subsídio ao preço, ora era ortodoxa e seguia o preço do petróleo no mercado internacional.

Em 2003, momento de sobra do gás e tendo de cumprir o take or pay com a Bolívia, a Petrobras criou o Programa de Massificação do Gás Natural para incentivar o consumo do energético. A política utilizada foi o congelamento dos preços do gás nacional e do boliviano, que, a essa altura já representava 50% do total de gás ofertado no país. Diante deste sinal de preço, as distribuidoras estaduais, em particular a Comgás e a CEG, investiram maciçamente na expansão de suas redes para atender novos clientes. A demanda de gás na indústria cresceu a altas taxas e difundiu-se intensamente o uso veicular do gás natural.

Em 2006 veio o primeiro momento de escassez. Os níveis dos reservatórios das hidrelétricas começaram a cair e a economia do país apresentava perspectiva de crescimento, demandando mais energia elétrica. Isso levou o governo a ordenar o despacho das termelétricas a gás. A surpresa foi que não havia gás suficiente para atender o consumo da geração elétrica e o industrial. Constatou-se que a Petrobras promovera um "overbooking" de gás, ou seja, vendera o mesmo gás para dois clientes. Não houve mudança na política do gás, dado que a situação foi contornada quando os reservatórios voltaram a se encher e o esperado crescimento econômico foi mais uma vez adiado.

No final de 2007, esse problema voltou a ocorrer. Só que desta vez os reservatórios encontravam-se em pior situação e a economia brasileira finalmente deslanchou, crescendo acima de 5%. Diante desse contexto são tomadas duas decisões que vão alterar o comportamento do mercado de gás. Para não provocar um "apagão" na indústria, o governo, por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), autorizou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a despachar as termelétricas a óleo antes das usinas a gás, violando o critério de despacho por ordem de mérito econômico utilizado na operação do sistema elétrico.

A segunda medida foi a celebração de novos contratos entre a Petrobras e as distribuidoras estaduais de gás canalizado num contexto de escassez de gás e aumento dos preços do barril de petróleo. A primeira medida obrigou um despacho inicial de somente térmicas a óleo, que acabaram gerando um aumento das tarifas de energia elétrica em 2009. Porém, em fevereiro de 2008, com a finalização do gasoduto Cabiúnas-Vitória, as térmicas a gás do Rio de Janeiro puderam ser acionadas, trazendo um maior grau de conforto para o sistema elétrico e provocando um crescimento no consumo de gás natural durante todo o ano de 2008. Esse crescimento manteve o fantasma da escassez de gás vivo.

Com a chegada da crise econômica em outubro do ano passado, as condições do mercado brasileiro de gás natural se inverteram e se passou de situação de escassez para uma de sobra de gás. Segundo dados da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), no primeiro semestre de 2009, o consumo médio de gás natural caiu 28% em relação ao mesmo período de 2008. Em valores absolutos, o consumo caiu de 50,1 milhões de m3/dia no primeiro semestre de 2008 para 36,1 milhões de m3/dia. Em resposta, as importações de gás boliviano caíram de 30,7 milhões de m3/dia no primeiro semestre de 2008 para 22,3 milhões de m3/dia no primeiro semestre de 2009, ou seja, 26%. Enquanto a oferta interna de gás nacional caiu de 28,7 milhões de m3/dia no primeiro semestre de 2008 para 21,4 milhões de m3/dia no mesmo período de 2009, ou seja, 27%. A queima de gás no primeiro semestre deste ano foi de 9,5 milhões de m3/dia, 73% superior ao queimado no mesmo período do ano passado. A queima no primeiro semestre de 2009 representou 26% do total comercializado pelas distribuidoras.

Além da crise econômica que influenciou a queda do consumo de gás na indústria, corroboraram para essa situação a redução do fornecimento às térmicas, já que os reservatórios das hidrelétricas estão cheios, e a perda de competitividade do gás em relação ao óleo combustível, devido à queda do preço do barril do petróleo. Os reservatórios das usinas hidrelétricas brasileiras este ano estão com o maior nível dos últimos 10 anos. Segundo dados do ONS, os reservatórios da Região Sul operaram, em média, com 47% da capacidade no primeiro semestre deste ano, os do Sudeste e do Centro-Oeste com 78% do potencial; os do Nordeste a 86%; e os do Norte, 81%. Com isso, o consumo de gás nas térmicas que foi em média de 15,5 milhões de m3 em 2008, caiu para 8,8 milhões de m3 este ano. O consumo do segmento industrial, automotivo, comercial, geração e cogeração caíram neste primeiro semestre, respectivamente, 26%, 14%, 2% e 24% em comparação com o ano passado. Apenas o segmento residencial, responsável apenas por 2% do consumo total do gás natural, apresentou aumento no consumo de 3,4% no período.

No atual contexto de sobra de gás natural, as distribuidoras estão reduzindo suas receitas e são acusadas de ter margens altas, quando a culpa maior pelas tarifas elevadas é do preço da commodity e transporte. Não há incentivos para investimentos em novos campos de gás nem por parte da Petrobras, nem das empresas privadas, e os consumidores industriais se sentem prejudicados por pagarem tarifas elevadas, apesar da sobra e da queda dos preços do gás no mercado internacional. Daí a necessidade de uma política anticíclica para o setor.

No curto prazo, é importante rever o contrato de take or pay com a Bolívia. Na realidade, os leilões de curto prazo de gás natural constituem leilões de desconto, nos quais as companhias distribuidoras de gás canalizado compram volumes já incluídos em seus contratos de longo prazo, mas com um desconto em relação aos preços nesse contrato. Apesar dos leilões beneficiarem o fornecedor (Petrobras), pois apesar da redução no preço há aumento no volume consumido, o que pode gerar aumento na receita da companhia; e as distribuidoras, que compram parte do volume de gás natural com descontos em relação aos preços anteriormente contratados, os volumes vendidos foram muito pequenos ficando longe de resgatar o equilíbrio entre oferta e demanda do setor. Outra medida seria a Petrobras rever o custo das suas térmicas, geralmente acima dos R$ 200 MWh. Com isso poderiam ser despachadas pelo ONS.