Título: O Imposto de Renda em 2006 - Parte II
Autor: Elisabeth Lewandowski Libertuci
Fonte: Valor Econômico, 16/01/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"Inexiste lei válida para exigir imposto de renda das pessoas físicas em 2006"

Em 6 de outubro de 2005 escrevi no Valor sobre minha preocupação no caso de não chegar a ser editada, em tempo hábil, uma medida provisória ou lei que cuidasse das regras do imposto de renda (IR) da pessoa física a vigorar a partir de 1º de janeiro deste ano. Destaquei a necessidade de a norma em questão ter de ser publicada ainda em 2005 para obedecer ao princípio constitucional da anterioridade (artigo 150, inciso III, alínea c da Constituição). Mais ainda, alertei que a imperfeição da técnica legislativa poderia levar ao absurdo de não se ter como tributar a renda do trabalhador a partir de 2006 e que o preço pela inércia em se tratar do assunto com a seriedade devida poderia ser muito caro, na medida em que a arrecadação do IR do trabalhador em 2004 atingiu patamares próximos a R$ 33 bilhões. Apesar de tudo isso ter sido dito em tempo hábil para ser editada uma norma que dirimisse qualquer dúvida a respeito do tema, o governo Lula se calou. Resultado: não há lei válida para tributar a renda do trabalhador desde de 1º de janeiro de 2006. Explico. Em dezembro de 2003, foi publicada a Lei nº 10.828, com singelos três artigos. O primeiro estabeleceu o tempo de permanência das alíquotas do IR de 15% e 27,5%, ou seja, até 31 de dezembro de 2005; o segundo determinou que a lei entrasse em vigor na data de sua publicação; e o terceiro sepultou definitivamente a alíquota de 25%, que voltaria a vigorar em 1º de janeiro de 2004, não fosse o conteúdo da sobredita Lei nº 10.828. Repito, então, que o artigo 1º da Lei nº 10.828 não cuida das alíquotas de incidência do IR da pessoa física (15% e 27,5%), mas sim do tempo de vigência das alíquotas: 31 de dezembro de 2005. A lei que disciplinava na época as alíquotas do IR (15% e 27,5%) era a Lei nº 10.451/2002. Se a razão de ser do artigo 1º da Lei nº 10.828 fosse cuidar de alíquotas de IR, ele seria inócuo na medida em que, quando de sua publicação, permanecia em plena eficácia a Lei 10.451/2002. Em maio de 2005, foi publicada a Lei nº 11.119. E qual teria sido a razão de ser desta? A de reajustar a tabela progressiva em 10%, motivo de comemoração por toda a sociedade. Poderia a Lei nº 11.119 ter alcance maior além de meramente atualizar em 10% a tabela progressiva? Logicamente que sim. Mas tão somente se tivesse se apresentado de forma explícita para a sociedade, como uma moeda de troca do governo Lula: dá-se 10% de reajuste na tabela progressiva em troca de se perpetuar a alíquota de 27,5%. E qual seria a técnica legislativa para dar conhecimento à sociedade desse fato? Estabelecer em seu último artigo a revogação do artigo 1º da Lei nº 10.828. A pergunta é: por que afinal de contas o legislador não tomou o cuidado de revogar o artigo 1º da Lei nº 10.828 ao editar a Lei nº 11.119? Mero descuido formal ou efetivamente a intenção de fazer prevalecer as alíquotas de 15% e 27,5% até 31 de dezembro de 2005, uma vez que, no curso de 2005, seria definido, com critério técnico, que alíquotas deveriam vigorar a partir de 2006. Sempre quis acreditar na segunda hipótese, pelo menos por dois motivos: a) a Lei nº 11.119 atendeu a vontade popular de reajuste da tabela progressiva, o que tinha se verificado pela última vez em 2002, sem que se exigisse, na época, qualquer barganha; e b) quando se convive no Estado democrático de direito não é nada razoável que a lei que regula o IR da pessoa física deixe de atender qualquer requisito formal para gerar efeitos. Raciocinar de forma diversa seria chancelar como imprudência e imperícia a técnica legislativa fiscal brasileira da atualidade, principalmente quando se trata de um assunto de tamanha relevância, que é a tributação sobre os rendimentos das pessoas físicas. Lamentavelmente, a Receita Federal quis levar às últimas consequências a má-técnica legislativa corporificada com a edição da Lei nº 11.119. Levanta agora a tese de que há legislação para cobrar o IR da pessoa física em 2006, porquanto revogou implicitamente a Lei nº 10.828. Sustenta o posicionamento valendo-se do artigo 2º, parágrafo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, que diz que a lei posterior revoga a anterior quando regule inteiramente a matéria de que tratava a anterior. Então, no lugar de ter regulado a matéria durante 2005, ancora-se em argumentos jurídicos para salvar a receita do IR da pessoa física em 2006. Se a Receita Federal optou por levantar tese para garantir a cobrança do IR da pessoa física em 2006 - no lugar de simplesmente legislar com prudência a respeito do tema ainda em 2005 - tomo a liberdade de fazer a argumentação jurídica que julgo mais correta: a Lei nº 11.119 não revogou o artigo 1º da Lei nº 10.828. Em primeiro lugar, porque as duas leis não cuidam do mesmo assunto: o artigo 1º da Lei nº 10.828 trata do tempo limite de vigência em que as alíquotas de 15% e 27,5% do IR devem vigorar (31 de dezembro de 2005) e a Lei nº 11.119 veicula nova tabela progressiva reajustada em 10%. Se as leis cuidam de temas diversos, é inaplicável a regra do artigo 2º, parágrafo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil. Se a regra da Lei de Introdução ao Código Civil é inaplicável, a Lei nº 10.828 não foi revogada e tem de ser aplicada ao lado da Lei nº 11.119, do que resulta a consequência lógica de que a tabela progressiva do IR veiculada pela Lei nº 11.119 somente pôde vigorar até 31 de dezembro de 2005. Outro argumento pertinente para sustentar a não-revogação do artigo 1º da Lei nº 10.828 pela Lei nº 11.119 é que, com o advento da Lei Complementar nº 95/98, as três únicas hipóteses de alteração da lei são a reprodução integral, a substituição do dispositivo alterado e a revogação expressa. No caso, como a Lei nº 10.828 trata do tempo de vigência das alíquotas de 15% e 27,5% e a Lei nº 11.119 veicula as faixas de renda a serem atingidas por essas duas alíquotas, não se pode dizer que houve reprodução ou substituição do dispositivo legal, pois, repita-se, para haver reprodução ou substituição há que se estar diante de dispositivos legais que tratem da mesma matéria, o que não se identifica entre o conteúdo do artigo 1º da Lei nº 10.828 e a Lei nº 11.119. Restaria tão somente a prática da revogação expressa do artigo 1º da Lei nº 10.828, o que nem a Lei nº 11.119, nem nenhuma outra tomou o cuidado de veicular em 2005. A consequência desse descuido deliberado do legislador é nefasta. Nem mesmo o artigo 18 da Lei Complementar nº 95, ao estabelecer que uma eventual inexatidão formal na norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida ao seu descumprimento, é, no meu entender, suficiente para salvar a aplicação da Lei nº 11.119 para 2006. Isso porque, novamente, não há inexatidão formal na Lei nº 11.119. Ela foi editada para conviver harmonicamente com o artigo 1º da Lei nº 10.828, mas apenas até 31 de dezembro de 2005. Concluir de forma diversa significa afirmar que o legislador regulou a Lei nº 11.119 valendo-se de inexatidão formal para passar na surdina a perpetuação da alíquota de 27,5%. Como não posso crer que a Lei nº 11.119 enganou a todos nós, como continuo acreditando que ainda convivemos no Estado democrático de direito que exige lei para retirar do contribuinte recursos para entregá-los ao Estado na forma de tributos, como creio que o ato de legislar deve ser realizado com plena responsabilidade, sinto-me no dever cívico de alertar aos contribuintes que inexiste lei válida para exigir o IR das pessoas físicas em 2006. As consequências desse fato seríssimo (verdadeiro caos, concordo) deveriam ter sido ponderadas pelo fisco no curso de 2005. Espero, pelo menos, que o precedente sirva de exemplo, no futuro, para se tratar o ato de legislar com seriedade, bom senso e razoabilidade.