Título: Por uma Constituição renovada em 2008
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2005, Opinião, p. A13

Atroz estorvo institucional impede que o esgoto de 30 milhões de domicílios comece a ser coletado. E também impede o tratamento de 2/3 do parco volume que chega a ser coletado. Estão nesse monumental chiqueiro quase 50% dos domicílios oficialmente urbanos, além de 96% dos oficialmente rurais. Por incrível que pareça, recursos para o saneamento vêm sendo colocados há anos nos orçamentos da União sem que sejam utilizados, pois não se consegue desfazer um absurdo nó legislativo. Acusado de não respeitar o constitucional poder concedente dos municípios, simplesmente mofou o projeto de lei enviado à Câmara Federal em 2001. O novo, formulado durante a gestão do ex-ministro das Cidades, Olívio Dutra, foi bombardeado pelo Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Saneamento, pela Aesbe (associação que representa as empresas estaduais de água e esgoto), e pela Abcon (que reúne as concessionárias privadas do setor). O trio alega que a eventual aprovação desse projeto estimularia os municípios das aglomerações urbanas - os mais ricos - a romper com as companhias estaduais, para sozinhos assumirem ou licitarem serviços de saneamento. Essas companhias não querem, evidentemente, perder tal clientela. E têm um ótimo argumento: sem as altas tarifas cobradas em aglomerações e centros urbanos, nunca poderão atender milhares de municípios rurais, onde tais serviços são forçosamente deficitários devido à falta de escala. Daí o projeto alternativo do senador Gerson Camata, que já teria conquistado dois fortes apoios velados: o da Abdib (a associação das indústrias de base), e até mesmo o do novíssimo titular das Cidades, Márcio Fortes de Almeida, ali colocado pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, como retribuição pelo apoio parlamentar do PP ao governo Lula. Ocorre que está no âmago do pacto federativo firmado na Constituição de 1988 a regra de que compete a cada um dos 5.561 municípios brasileiros a organização e prestação dos serviços públicos de interesse local, seja diretamente, ou sob regime de permissão ou concessão (Art. 30). É muito difícil imaginar, portanto, que tal competência venha a ser usurpada por ato do Congresso, por mais racional e conveniente que possa ser. Se algum dia houver uma decisão capaz de desfazer o dilema, ela só poderá sair do Supremo Tribunal Federal. Semelhantes entraves institucionais obstruem a continuidade da reforma da Previdência e bloqueiam outras reformas cruciais, como a tributária e a política. Motivos que levam o governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto (PMDB), a propor que o Congresso Nacional a ser eleito em 2006 receba da sociedade o poder de reformar a atual Constituição. Motivos que estimulam o presidente nacional do PPS, deputado Roberto Freire, a pedir a convocação de uma Constituinte - exclusiva e com candidaturas avulsas - para reformar os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, sepultar privilégios e estabelecer um novo pacto federativo. Motivos que empurram a deputada Luiza Erundina, do PSB, a brandir até a mais ousada palavra de ordem "Assembléia Constituinte, Já!".

Há um forte descompasso entre a Constituição formal e as reais necessidades do povo, e o Congresso de 2006 deve reverter essa realidade

Todavia, tais propostas só poderiam ser interpretadas como violação, golpe e fraude, no juízo do grande constitucionalista José Afonso da Silva, ("Folha de S.Paulo", 13/08/05, pág. 3). Ele lembra que a supremacia nascida em 1988 do ventre da mais elevada soberania popular deverá perdurar enquanto a atual ordem vigente não for rompida por algum golpe, ou revolução. A atual Constituição resolveu uma crise de legitimidade decorrente do assalto desferido contra o regime democrático fundado em 1946. Nasceu da necessidade absoluta de se consagrar nova idéia de direito e nova concepção de Estado. E resultou de momento histórico no qual o povo brasileiro resgatou o mais básico de seus direitos fundamentais: o de manifestar-se sobre o modo de existência política da nação pelo exercício do poder constituinte originário. Assim, qualquer novo poder constituinte seria neste momento ilegítimo. Seria um poder de desconstituição e não de Constituição, conforme o parecer do presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democráticos, José Afonso da Silva. O problema é que em 1988 foi promulgada uma Constituição tão minuciosa que atingiu 323 artigos, dos quais 73 transitórios. A ela já foram espetadas mais de 50 emendas em menos de 17 anos. Praticamente três emendas por ano. E, apesar de tanta bricolagem, subsistem sérios buracos negros institucionais que impedem a melhoria das condições de vida e de trabalho da maioria da população brasileira. Há no Brasil um forte descompasso entre sua Constituição formal e sua Constituição real: as necessidades de seu povo. E talvez não exista exemplo mais grotesco do que o escolhido para abrir este artigo, o do saneamento. Os nobres constituintes de 1988 não tinham condições de prever que a singular República Federativa tripartite que quiseram criar viria a ter 5.561 heterogêneos pilares autônomos. Optaram por uma bem intencionada e profunda descentralização, que certamente deu excelentes resultados no ensino fundamental (e também na saúde), mas que vem se mostrando desastrosa para a interiorização do dinamismo econômico e da qualidade de vida. Ou para a modernização do sistema previdenciário, da estrutura tributária e dos costumes políticos. Qualquer Constituição do final dos anos 1980 correria sério risco de se mostrar ultrapassada em 2005. Um risco pequeno, é provável, se tivesse algumas poucas dezenas de artigos. Mas altíssimo no caso de uma verdadeira bíblia de três centenas. Cabe, então, aos melhores constitucionalistas brasileiros sugerir a forma mais adequada de se promover a imprescindível atualização sem que sejam alteradas cláusulas pétreas, e que simultaneamente evite qualquer coisa que possa parecer "violação, golpe ou fraude". O desenvolvimento do Brasil no contexto global deste início de milênio está sendo demasiadamente estorvado por sua derradeira fonte de instituições formais. Será trágico se o Congresso eleito em 2006 não puder agir no sentido de que o país se dote de melhor Constituição até 2008.